TORRESMINHOS

                                                                     

Algumas vezes ela nos chamava pelos nomes, em outras...enfiava o dedo polegar e o indicador na boca e um assobio cortante ecoava pelos potreiros de nossa meninice e aí sabíamos estar sendo convocados.

A chamada pelos nomes - com uma certa doçura - e os assobios - nem tanto -faziam parte das variantes de seu humor.

Era vó Maria, convocando meus primos e eu, para mais uma missão.

Janeiros aconteciam com seus tempos quentes e o cheiro das peras andava pelos ares.

Eram tantas pereiras naquele quintal e uma abundância de frutos que destinavam-se aos tachos de doce, aos agradinhos para a vizinhança e a quem mais desejasse aqueles frutos enormes e sumarentos, de cascas muito duras e não muito cobiçados à degustação.

No auge de nossas férias escolares, obedientes às ordens daquela senhora que disfarçava-se de sargentona, partíamos paras as tardes de "descascança" como ela dizia.

Um estoque exagerado de doce de pera já havia sido depositado nas prateleiras rústicas dos armários, nos potes em calda, na forma pastosa e numa forma mais encorpada, armazenado nas caixetas de madeira logo no final da escada que dava para o sótão.

[ Local visitado pelas abelhas que adentravam pela janela e, vez e outra, por algum neto mais ousado de faca em punho para cortar as delíicias que exalavam o odor das peras casado com o cheiro de brotas de figueira. Cortavam-se algumas "taiadas" (outro termo da velha senhora),metiam-se nos bolsos e a festança ocorria ao fundo do quintal, onde um riacho de águas muito limpas oferecia dourados lambaris à quem empunhasse um anzol

Mas, voltemos ao assunto...

Não obstante aqueles estoques de doces, trabalhava-se as provisões da dona da a casa.

-Vamos lá, piazada de bosta !

Chispem descascar peras e corta-las em "torresminhos".Estamos num tempo de abundância, mas quando chegar a "coresma", com seus ventos frios e folhas caídas, quando os "passarinhos fecharem os bicos",bate a saudade de um docinho no ponto.Por isso, vamos preparar muitos torresminhos e guardar em caixetas até que "os tempo de friage" aconteçam.

Umas quinhentas peras por hoje já fica de bom tamanho.

[ Não me recordo se alguma vez cumprimos a meta rsrs...]

Então, de facas em punho, partíamos para as missões que nos eram atribuídas.A fornalha ardia no meio do quintal e, feito uma procissão, ajudávamos a conduzir as dezenas de formas dos "torresminhos" para desidratação.

A paga era um generoso café com tudo o que tínhamos direito: Vovó caprichava no piché de ovos, nas fatias de pães com banha, manteiga e doce, dependendo do gosto de cada um.

Ao redor da mesa, sob o olhar meloso da suposta sargentona, nos empanturrávamos!

Por vezes falando de boca cheia, tecíamos planos para o que viria depois de pularmos a cerca do quintal.

Abril dava seus ares com galhos despidos, o ocre das folhas vagando pelos terreiros, um vento frio e as quaresmeiras abrindo sorrisos lilases ao redor das cercas.

O tacho ia para o terreiro. Sob a trempe, crepitavam as chamas e os "torresminhos"

imersos em muito açúcar iam formando aquela massa cor de âmbar.

Eram as peras de nossa infância transformando-se num encorpado doce.

Vovó manejava a pá - que era maior que ela - as brotas de figueira juntavam-se ao produto e o mais doce dos cheiros incensava os quintais pelas cercanias.

A "coresma" chegava num tempo de recolhimento e os doces eram partilhados com os familiares e com a vizinhança.

Ontem, 01 de novembro, depois de fazer algumas orações no jazigo da familia, fiquei longo tempo a espiar as fotos: Minha mãe, com aquele seu ar de alegria ao lado de meu pai, faziam-me perceber o quanto de colo ainda preciso,embora a idade me faça um sério candidato a empreender a longa viagem.

O irmão que não cheguei a conhecer, a tia Antonia que se foi ainda muito jovem, meu avô paterno e ela!

A vó Maria. Aquela com quem convivi durante toda a minha infância. Embora não hajam retratos desta gente,exceto de meus pais, guardo nitidamente os traços de vovó.Fecho os olhos e sinto ainda o seu cheiro.O cheiro dos doces, dos quitutes, que ela preparava.

Mentalmente fui lhe cobrando:

-A senhora sacaneou a gente com aquelas "descascanças de peras" , né vó ?

E numa espécie de transe ouço-lhe a resposta.

-Éh!... Mas comestes tanto doce que até ficou gordo desse jeito ! kkkk

Que Deus te ilumine, piá de bosta !

 

IRATIENSE THUTO TEIXEIRA
Enviado por IRATIENSE THUTO TEIXEIRA em 02/11/2021
Código do texto: T7376932
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