Comunicação 1 - Complexidade

De início, pensei em analisar a comunicação de uma forma generalizada. Parti do primórdio de estudar comunicação como sendo uma simples troca de informações benéfica entre dois organismos unicelulares, passei para uma relação inamistosa célula com vírus e cheguei ao apogeu numa conversa entre dois seres humanos face a face.

No entanto, logo percebi que me entranhava em labirintos teóricos e filosóficos, o que acabou por me afastar do desejado foco em analisar a complexidade do fenômeno comunicação humana. Desta forma, limpo minha mesa e ponho a maturar a citada análise até outro momento, deixando sob a luz somente a comunicação entre duas pessoas, frente a frente.

Neste caso, o meio principal da comunicação são as palavras. Palavras encerram definições, precisam se ligar numa matriz de contexto para que, atravessando o ar que separa boca de ouvido, possam entregar o sentido que carregam. Palavras são frias, técnicas demais e, por isso mesmo, exatas demais; o que traz como ricochete o advento das figuras de linguagem, das poesias e de todo o amplo aparato de técnicas de embelezamento abstrato cabíveis às mensagens passadas por palavras.

Eu disse que as palavras ditas num diálogo cara a cara são o principal meio de comunicação? Eu menti, de propósito, pois omiti o termo “geralmente”. O mais correto seria dizer que as palavras geralmente são o principal meio de comunicar uma mensagem num diálogo. E vou além, até. Talvez o mais adequado seria usar “raramente”.

Observe aquele casal ali, na mesa apontada pela réstia do sol, no rumo do fumego da sua xícara de café. Estão sentados, um de frente para o outro, e dá pra ouvir o que estão conversando. O diálogo é sobre uma assunto cotidiano, de interesse aos dois, pendendo mais para o importando do que para o fútil. No entanto, há pitadas de humor, ironia, sarcasmo e sensualidade dissimulada. Dá pra intuir que estão num bom jogo de flerte. Podem ter se conhecido agora ou podem estar no início de um relacionamento empolgante.

Não estão fazendo contato além do visual. As palavras ditas por um podem ser precisas em seus sentidos ordinários, mas a mensagem não é passada exclusivamente por elas. Junto com as palavras, vai um conjunto de estímulos visuais provenientes do corpo do emissor. Linguagem corporal, sobre a qual inconscientemente aprendemos desde pequenos. Ainda, a entonação atípica de um único vocábulo pode mudar o significado da mensagem inteira, assim como o contexto em que a palavra foi inserida pode subverter a interpretação.

Realmente compreender e ser compreendido, numa conversa destas, é o que infunde prazer a este jogo. Faz parte dele o desafio ao raciocínio e à sensibilidade. Pois as palavras carregam uma significância incompleta, e até contrária ao que se quer dizer de verdade. O ouvinte, para entender a mensagem, precisa decodifica-la rapidamente ao mesmo tempo em que recebe uma enxurrada de informações. No meio de palavras, gestos, entonações e contexto, é preciso concentração total para não se perder enquanto prontamente identificam-se os efêmeros ganchos e saliências onde se agarrar. Um milésimo de segundo a mais e o tempo passou, assim como sabem os consagrados humoristas, que costumam ser cirúrgicos na inserção de piadas tempestivas ("timing").

Os mais habilidosos ainda podem ser capazes de capturar alguns dos ganchos sem usá-los de imediato. Mais tarde, constroem com eles correntes e desferem um golpe de inteligência e bom humor que lhes rendem vários pontos neste jogo. Os menos inspirados podem tentar usar uma saliência fora de tempo para escalar um pouco mais e acabam pisando em falso e escorregando, afetando o delicado equilíbrio climático do momento.

O flerte é um jogo onde a graça está em esconder a mensagem real para que ela seja buscada, como numa brincadeira de pique-esconde, onde o bom mesmo é procurar e sentir-se agraciado com a sensação de encontrar. Ainda em comparação com a brincadeira, flertar tem em comum o conhecimento da existência do que está oculto. As crianças brincam com prazer porque sabem que os colegas estão escondidos, desafiando-as. Aquele casal goza da paquera, pois já identificaram o interesse no recôndito alheio, mas isso ainda não foi abertamente revelado por nenhum dos dois.

Mas pode ser que ainda estejam tentando vislumbrar o desejo um do outro. Neste caso, a desafortunada criança pode estar procurando coleguinhas inexistentes. Ao certificar-se da solidão de sua diversão, corre o risco de frustrar-se. Para um integrante do casal, o resultado será negativo por não satisfazer à sua aspiração.

Em todo caso, alguém ter obtido a informação que procurava sem ter tido que formular em palavras uma pergunta direta nos mostra como pode ser intrincado o processo de comunicação.

Aqui deixo um gancho para uma crônica futura, evitando divagar demais nesta. Uma que dirá sobre interpretação, probabilidade de acertos, extrapolação de informações e por aí vai. Afinal, qual a certeza da informação obtida sem uma pergunta direta? E as chances de uma resposta honesta a uma pergunta destas?

O ponto de interesse na atual discussão é a riqueza de detalhes encerrada numa comunicação entre dois seres humanos frente a frente. É uma arte o domínio destes recursos e demanda tempo nela instruir-se. Obviamente, tudo também se aplica a além-flerte. Em qualquer processo de comunicação complexas nuances podem ser encontradas. Na política, muitas vezes se diz uma coisa, mas a mensagem passada é outra. Num bom filme ou romance, é comum depararmo-nos com um diálogo que pode ser interpretado de formas ambíguas, dúbias: mas todas válidas.

Uma analogia a mais ainda pode ter seu lugar. Um diálogo é feito com a alma, através do corpo. Uma alma fala a outra fazendo uso dos meios físicos à disposição do corpo. Quanto mais afinados estão corpo e alma, menos distorção há na mensagem enviada e na tradução recebida. Falta desta sintonia gera um comportamento que nós identificamos como esquisito ou forçado, pois desemparelham-se canais presumidamente gêmeos como palavras e gestos.

É preciso prática de atleta até que o corpo aja em modo automático e não chegue a atrapalhar. Se o atleta pensa antes de agir, ele pode errar. Por isso é que atletas treinam certos movimentos à exaustão, visando que aconteçam por si sós, sem necessidade de serem premeditadamente invocados. Penso que, em termos de diálogo, acontece algo semelhante. Para saber bem conversar, é necessário treinar com conversa. No entanto, para avanço nas artes da comunicação, faz-se mister que se tenha consciência de suas próprias faculdades: como se está falando, quais gestos estão sendo feitos, quais vícios de dicção existem, como é a entonação e cadência das palavras, entre demais. Cursos de oratória, provavelmente, vão concordar com isso.

Enfim, ao se lidar com seres humanos me parece de maior proveito renunciar às ciências exatas em prol das instruções da alma ao se suster uma boa conversa. Um diálogo honesto, não superficial, é feito com a essência do ser. Faz de palavras e gestos meros meios físicos por onde a alma flui, incorrupta, cavalgando e transcendendo as submissas leis naturais.