Sempre tive vontade de fazer um trabalho voluntário. Mas com velhos. Meu marido um dia me perguntou: “Por que você não faz trabalhos com crianças? Eu a conheço, você vai se envolver demais e se deprimir”. Mas pensei que não, que gostaria mesmo de trabalhar com velhos. Criança é uma renovação, eles por si só se fazem felizes, pela própria natureza. Eles ainda tem um mundo pela frente. Não precisam viver de lembranças.

Os velhos ali estão, parece que estancados no leito da vida. Tem limitações no andar, no falar, no se mover. Alguns lutando com sequelas de derrame, outros, sem poder andar, alguns fora do mundo... não é um mundo bonito. Quando passava pelos corredores, muitos me chamavam, levantando os braços. Querendo uma palavra, seja lá qual fosse.

 

Quando entrava naquele lugar, engraçado o que imediatamente eu sentia. Uma energia, uma forca, uma vontade de estender minha mão, de tocar pessoas. Mas o mais engraçado é que tudo isso parece que vem em dobro para mim de felicidade. Como explicar? Parece que estou fazendo algo para mim, e não para os outros. Uma satisfação plena. Entregavam-me  um papel com a lista das pessoas que tinha que visitar. Existem as alas "A", "B" e "C", então lá eu ia a procurar meus pacientes.

 

A primeira era a Opal, o marido havia morrido de derrame cerebral. Eles se conheceram e ela tinha 16 anos e ele 18. Diz ela que foi um amor a primeira vista, e que nunca mais se separaram (foram casados 68 anos).

Ela se queixava de dores no corpo, então eu sentava na cama e ficava a conversar das suas dores (que coisa boa é poder falar das nossas dores), das suas limitações. Então ela me perguntava: “Já contei para você como conheci meu marido?” (ela havia contado sim). E eu dizia, “Não! Me conte!”. Mas na verdade eu adorava ouvir sua historia, que ela havia visto ele pela primeira vez numa estação de trem.

 

Ela descrevia o vestido, como sendo um de rendas, e ele de chapéu e terno, e eu imaginava aqueles filmes antigos. Ele ajudou-a a entrar no trem. E de lá…tudo começou. Então ela me apontava aquela foto dos dois, uma que ela mais gostava. E dizia: “Eu gosto dessa foto porque foi a ultima que tiramos juntos”. Ela sofria muito com as lembranças e eu a ensinei a meditar, de pensar nele com alegria (difícil falar isso). E então ela segurava minha mão, lembrava-me da mão da minha avo: branquinha, macia, com as unhas pintadas de cor de rosa.

 

Depois passava pelo quarto da Laura. Laura era minha favorita, porque ela aprontava muito! (Acho que eu me via como ela se ficasse num lugar assim! rs). Quando eu servia o almoço, trazia na mesa dela a comida e a sobremesa. Logo ela me chamava: “Maria, você não trouxe a sobremesa”. Eu de soslaio, via que ela havia colocado a sobremesa em baixo da mesa (ela sempre queria duas...) “Ahhhh olha aqui, acho que caiu no chão Laura” Espera ai que te trago outra.

Antes de sair de seu quarto, eu tinha que repetir com ela umas frases que ela queria que eu repetisse:

 

I am healthy (eu sou saudável)

I am happy (eu sou feliz)

I am on my way to heaven (Estou a caminho do Paraíso).

 

Eu repetia e ela me olhava fixamente lendo meus labios, ria alto, como uma criança. E dizia: Você aprendeu!

A Laura não escutava, então eu me comunicava com ela por escrito. Eu escrevia, e ela respondia falando. As vezes depois do jantar, ficávamos lá conversando assim, eu desenhava bonequinhos, caretas, ela ria muito.

 

Passava então pelo quarto do Norman Wise. Ele foi Sargento na 2a. Guerra, fazia questão que eu passasse no quarto dele para conversar. Entusiasmava-se a falar dos batalhões, dos tiros (e bem eu que não gosto de filme de tiro). Mostrava-me as medalhas, falava das armas, e da Bandeira Americana. Toda vez antes de eu sair, ele ficava em pé com a mao no peito e cantava o Hino Americano e eu não conseguia me conter, chorava mesmo. Hinos me emocionam muito. Ele tinha uma foto dele com o Ronald Reagan, que era seu orgulho. Ele era um verdadeiro Livro de Histórias.

 

Hora de ajudar no jantar. Como gostava de fazer isso!

Ia de mesa em mesa colocando o chá gelado, água, ou limonada. Café. Conversando com eles. A Laura (a velhinha de chapéuzinho vermelho) já estava sentada lá. E me abanava a mão! Corria tanto. Para lá e para cá . Agua, café, chá, sobremesa... leite, suco, canudinho, mais um garfo. "Corta para mim?" "Abre esse saquinho para mim por favor?" "Poderia trazer mais gelo?" "Não tem mais manteiga?" "Você tem outro pão?" "Acabou o cream para o café.". Ufa! que correria!

 

De repente vem o Warren. Esse era um velhinho que andava com muita dificuldade. Então ele parava, e fica me olhando. E eu dizia: “Quer sentar Warren?” Ele murmurava: “Acho que quero”. (risos). Todos os dias ele dizia a mesma coisa. Segurava-o pelo braço, e o levava para a mesa. Cortava a comida dele toda em pedacinhos, e dava em sua boca. Ele não conseguia levantar a mão direita. O engraçado é que eu ficava dando a comida e ele dormia. Então eu o chamava: “Warren!” Ele abria os olhos e dizia: “Já é de manha”? "Nao, Warren, voce esta jantando" - e ele abria um sorriso.

 

Minha ultima parada (e a preferida) era a mesa do Bill. Como gostava desse homem! Gostaria de gravar algo em Braille que pudesse dar para ele ler, o que pensava dele. Queria fazer um poema para o Bill. Ele era cego, mas achava tudo bonito! “Bill, hoje tem macarrão, espinafre, e carne …ah! não sei que carne é essa, espera que vou perguntar” Ele tocava meu braco: “Não, não precisa. Deve estar muito boa”. Tinha sempre um sorriso no rosto como se a vida fosse a coisa mais linda do mundo. Comia com prazer, como se para ele não fosse importante enxergar, mas sentir.

 

Quando ele sabia que estava nevando, perguntava: “Esta nevando hoje, né Maria?” E eu: “Sim Bill, bastante!” E ele dizia: "Como a neve é linda!"

Naquele momento sentia uma coisa aqui dentro de mim, inexplicável. Vejam, aquele cego "via" a paisagem que nós, que enxergamos com dois olhos, talvez não vissemos com o coração que ele via. Talvez um dia ele já tivesse visto, e guardasse essa imagem. Talvez, ele nunca tenha enxergado, e imaginava essa imagem.

Quando chegava perto da mesa e ele dizia: "Olá, obrigada por nos servir". Ele pressentia a presença, uma coisa admirável.

Lembro que um dia no final do jantar, houve um problema eléctrico e apagaram-se todas as luzes. E o Mike que sentava ao seu lado na mesa gritou: “Está escuro aqui!” O Bill deu um sorriso largo e disse: “Aqui também!”. Depois tocou o braço do Mike e disse: “A vida é luz”. Nossa, esse foi um “klenex day” para mim. Quando sai de lá, peguei meu carro e chorei tudo que tinha direito… mas chorei de pura emoção.

 

O que são os velhos mais do que crianças grandes? Tão inseguros em seus passos e seus atos... Tão sensíveis.

Qualquer palavra para eles, e uma grande palavra... Qualquer gesto, um grande gesto.

Muitos desses velhos estão abandonados, e querem apenas alguém que os escute suas historias milhares de vezes. E como é maravilhoso fazer parte do mundo deles. Muitos os filhos não visitam, outros nem tem família.

 

Fiquei lá tres anos e meio, e sai para ir para o Brasil de ferias. Pretendia voltar esse ano. Com o Covid, isso não foi possível. Mas quando tudo isso acabar, sem duvida alguma eu vou voltar. Mas ainda mantenho contato com eles "de longe", tento saber como estão.

 

Termino aqui com uma propaganda que tinha no Brasil há muitos anos atrás na televisão, e que sempre me emocionava muito.

Aparecia o pai com o filho pequeno, e ele dizia: "Come, meu filho!" E o menino fechava a boca e não queria comer.

Depois, mais tarde, o filho já adolescente, o pai viu o viu fumando. Arrancou o cigarro da mão do filho e disse: "Não fume! Isso faz mal para a saúde!".

Então a propaganda mostra, muitos anos depois, o pai velhinho e o menino um jovem adulto, o velho sentado na mesa, e ele dizendo: "Come pai! você precisa comer". E o pai fechando a boca, não querendo comer.

Depois o filho vê o pai escondido fumando na área, vai lá tira o cigarro da mão do pai: "Pai, cigarro faz mal!".

 

E isso me faz pensar: o que é a vida senão um maravilhoso reciclar?

 

Notinha: Desculpem a falta de acentos.

 

Mary Fioratti
Enviado por Mary Fioratti em 13/11/2021
Reeditado em 13/11/2021
Código do texto: T7384661
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