Um dia a mais, um dia a menos

     A colega, exausta, despediu-se do escritório:

   

     - Um dia a mais, ufa! Até amanhã. 

     

     Foi ele escutar a pergunta e retrucar mentalmente: um dia a mais ou um dia a menos? Ganhamos um dia ou o perdemos? Todo dia era a mesma despedida no trabalho. Naquele momento, estava meio zumbi, raciocínio lento, não estava a fim de conversa.Tinha acordado às quatro daquela manhã com uma quarta-feira entalada na boca. Explico: as cartelas de medicamentos de uso contínuo são marcadas com as três letras iniciais dos dias da semana, artifício contra os esquecimentos. Nos orifícios cobertos por finíssima capa de alumínio, os comprimidos se alojam e comandam a passagem do Tempo, como qualquer ampulheta ou cronômetro de celular. Todas as manhãs, a mesma angústia ao ver os dias e os comprimidos se consumindo. E não dá pra tomar todos para "ficar livre", como podemos fazer com certas coisas chatas. Teria de conviver com aquilo até a missa de sétimo dia, sentenciou uma endocrinologista. Tétrica afirmativa! Engoli-los era concordar com a Seta do Tempo apontada para o Futuro e  caminhar  para a sepultura, nossa destruição. Era aceitar a Entropia: desde o dia do Big Bang, os Universos se destrambelharam e caminham para a destruição. Por isso também caminham em fila: a Terra, o Sol, o Universo, cada um se consumindo em sua dimensão e velocidade. Esse trio também teria sepultura. A democrática Impermanência afeta a tudo, a todos. E para que? Por quê? Continuou pensando: um dia a mais ou um dia a menos? Sem resposta, engoliu a quarta-feira teimosa, que já lhe amargava a boca. Sentiu descer pelo corpo o sal básico de sua composição, retirado do fundo da Terra pela indústria farmacêutica.

 

     Pois ao pensar nas profundezas da Terra, mentalizou os vulcões, os verdadeiros senhores da Natureza. Esses, sim, moldam o mundo. Constroem ilhas, destroem pompeias. O Cumbre Vieja, por exemplo, na ilha de La Palma, há alguns meses, segue inexoravelmente sua volúpia destruidora. Vai lambendo plantações de bananeiras, casas, fábricas e perdoando pessoas... por enquanto. Se os vulcões pensam, o Cumbre Vieja parece ter um objetivo bem claro: destruir lentamente todas as partes habitadas da ilha e solidificar o oceano em volta. Assim, compensaria a destruição de hoje e acrescentaria nacos de terra, futuramente férteis, ao atual território espanhol ultramarino. Na sequência, nosso pensador passa da Espanha à Itália e o Vesúvio lhe aparece na mente. Milhares morreram em Pompeia, em 79 DC. Em 1° de novembro de 1891, uma solitária vítima: Silva Jardim. Esse orador republicano, político e abolicionista brasileiro, natural da cidade fluminense que hoje tem o seu nome, caiu na cratera silenciosa: aos 31 anos de idade, não teve paciência de aguardar uma nova erupção. Pelo menos viu a queda do Império.

      

      Ao lado dos dois cospe-fogos, impossível esquecer o Kilauea,  diligente  e incansável escultor. Esse parece querer esculpir um continente no vazio do Pacífico, pois não descansa desde 1982. Paciente, determinado, aumenta a superfície da Ilha Grande, a maior ilha do arquipélago. 

 

     Nosso pensador volta às  palavras da colega. A resposta não vinha: um dia a mais ou um dia a menos?  Os dizeres metálicos em volta dos comprimidos de uso contínuo resumiam os nomes dos dias da semana e adquiriam sentido extra: SEG ... a vida seguia, sim. TER... ou não ter, sempre a questão. QUA... só podia pensar no pato. Quem vai pagar o pato? Pois é, quem inventou a Vida e não a explicou? QUI... a referência imediata eram os nomes latinos, o V escrito no lugar do U. Já SEX era uma miragem, uma fascinação distante no tempo e no espaço. Teve seu valor, mas, com o tempo, tudo se torna relativo mesmo.  Já SAB e DOM eram óbvios, não agregavam conteúdo ao tema.   As reflexões e viagens mentais continuavam e continuariam enquanto o incansável carro do Sol cruzasse o Zodíaco. Devia descansar.

 

     Entrementes, os passarinhos começavam a assanhar a manhã: sabiás tristes, bem-te-vis agourentos, pardais irrequietos e casais de joão-de-barro estourando de felicidade monogâmica. O Sol, ciente ou não de seu também trágico destino, surgia. O pensador fez bem ao engolir o comprimido e deixar a semana correr. A quarta-feira tem pressa de ser consumida, os outros dias também têm seus direitos, a Vida está aí para isso mesmo. Um longo dia espera, pode ser o último, é preciso bem vivê-lo. 

 

 

William Santiago
Enviado por William Santiago em 22/11/2021
Reeditado em 18/08/2022
Código do texto: T7391488
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