Do banco de madeira da varanda, as maritacas pareciam estrelas verdes em plena reação nuclear, invadindo a árvore que acabou de se despir da indumentária usada no outono.

Sentada e no silêncio da manhã que ainda despertava o Sol e seus reflexos, o som era inigualável. A sensação de euforia era nítida na violência com que arrancavam o fruto: na lei da sobrevivência há os que usam de suas peculiaridades para ter acesso primeiro, e consomem, como há também os que, retardados pelas limitações, chegam atrasados e ficam com as sobras e se consomem.

Aquele pé de jabuticaba, tomado pelas aves, manteve em sua sombra diversos sentimentos. Da primeira até a oitava geração da família, ele era uma espécie de árvore das lamentações e penúrias. Não fosse a carga leve de ser frutífero, a solidão seria sua única companhia. Tentaram cortá-la, pela raiz, mas sobreviveu rasteira. Capengando ressuscitou. E se varou de histórias contadas em 3 d.

Assistiu sem nenhum movimento a morte de Tadeu, coitado (contada entre os dentes pelos ascendentes). Que Deus o tenha. Trabalhador bruto, quis se aventurar em terrenos perigosos, pulou a cerca e foi plantar sementes em quintais que não lhe competiam, cheios de mistérios e muros baixos. Ela não era Santa e nunca fez votos de castidade. O terço na mão era a libertação do pecado que a corroía, em seus desejos,  ocultados por aquele véu de pureza. Não deu outra: morreu no susto, tiro de espingarda. Um sargento reformado do Exército não comete crime, proncipalmene na casa de vizinho: foi acidente, matou-se Tadeu, por remorso. E ela? Decidiu seguir a vida religiosa: antes só que mal acompanhada, digo, antes com Deus que endiabrada!

Viu o primeiro beijo da Alice, ainda com cheiro de fraldas, aos 12 anos, que tempos depois casou-se com Frederico, o primo primeiro que estudou para médico. Tão bom era aquele menino, que fazia partos de graça, inclusive das "moças virgens" que o visitavam em sua recém chegada, perto da festa das flores e do Santo Inácio.

A corda que acabou com a dor de Laura foi pendurada bem no galho do meio. Era o mais grosso. E o mais alto. E o toco de madeira que a sustentou até o ultimo segundo que a separou do céu e lhe deu o inferno, virou brasa no fogão a lenha. Aquele pé não era bento.

E por falar em Bento, o Santo de mesmo nome, salvou o pai do pai da minha avó. Jararacas andam em bando? No quintal, agora cheio de verduras, a vista era certa: rúcula, serraia, couve, cebolinha... E uma dezena de galinhas. Que feito gente, avisaram da invasão "das amigas". Tarde demais para quem nunca imaginou um bote. Era ranzinza ao cubo para aceitar limitações, inclusive as suas. Foi daí que herdei esse temperamento explosivo. Ou foi culpa da Astrologia que me permite justificar defeitos no signo de câncer com ascendente em virgem?

Minha avó chorou a perda do primeiro neto lá: Leucemia! Mas não quis sobrecarregar a árvore só com mazelas. Era tão sábia ela...

Fez piquenique em dia de aniversário, colocou redes para aproveitar a sombra, apostou num banco de bambu verde e amarelo, reaproveitado. Reuniu meninos e meninas num presépio vivo de Natal, promoveu São João em junho e fez da mangueira chuveiro em dias quentes.

Por mim, em sua ausência e daqueles antepassados que deram conta de um déficit algébrico que o tempo jamais compensou, só vejo beleza: A copa grande e alta, os frutos doces e a certeza de que a vida passa numa fração de segundos, naquela natureza inerte.

À sombra da jabuticabeira qualquer um descansa em meio à selfies enquanto os frutos são devorados pelos animais.

E na mesa do café? O suco é "de caixinha". Modernidade, Modernidade. E a culpa é do pé da jabuticabeira e não da humanidade.

 

 

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 26/11/2021
Reeditado em 26/11/2021
Código do texto: T7394229
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