A estátua de Borba Gato

A estátua de Borba Gato me lembra minha infância. Nascido e criado no Campo Limpo, um dos bairros novos da periferia sudoeste de São Paulo, eu tinha em Santo Amaro a referência de "cidade" (tanto que havia quem dissesse, entre os campolimpenses, que uma ida à Santo Amaro era uma ida à "cidade"). Como tinha rinite e suspeita de outros problemas respiratórios, tinha de passar no otorrinolaringologista em intervalos regulares, para tratamento, e a clínica era na região da Avenida Adolfo Pinheiro.

No trajeto percorrido de ônibus, ao lado de minha mãe, um dos pontos altos era justamente a estátua massuda do homem de olhar fixo portando uma espingarda e roupas antigas. Como ponto de referência, destoante da paisagem urbana dos arredores, a tal estátua me intrigava e despertava uma curiosidade que desembocou, entre outros caminhos e descaminhos, num bacharelado em História.

Por conta disso, a estátua, já na época de minha infância, controversa por seu estilo arquitetônico, reside num espaço afetuoso de minha mente. Hoje, controversa por motivos ocultos naqueles vinte e tantos anos atrás, o fogo na estátua e as propostas de sua retirada me despertam um sentimento de tristeza.

De verdade, sinceramente, não gostaria que fosse retirada. Não somente pela memória de um menino de periferia, mas por todo o pensamento profundo que ela pode -- e deve -- evocar.

Primeiramente, pensemos em São Paulo da época de Borba Gato. Era uma cidade muito diferente, muitíssimo menor que agora. Nem era cidade. Decerto devia assemelhar-se com um lugarejo de Interior de hoje, se você conhecer algum. Caminhos de terra, construções simples, povo tão simples quanto.

Ao redor de São Paulo, natureza e o desconhecido. Sem contar com a velocidade da Internet e a enxurrada de informação que ela traz, um paulistano típico de trezentos anos atrás não sabia o que o aguardaria vindo das matas e campinas ao redor.

Coisas boas? Ruins?

Lembremos que o Brasil sequer existia. Éramos Portugal, pro bem e pro mal. Os espanhóis estavam perto. Os franceses podiam aparecer. Ou, quem sabe, índios nada simpáticos à existência daquela vila. Pior: próprios portugueses, por algum motivo ou outro, podiam sitiar e destruir aquele lugar.

Quem sabia? Lembre-se que você é, agora, um paulistano de três séculos atrás. Você não tinha grandes perspectivas de vida em um lugar limítrofe, tênue, pobre e deixado à própria sorte pelo seu Reino, que pouco ou nada te ajudava.

Você não tinha Bolsa Família ou vale refeição. Você só tinha suas mãos, engenhosidade e família, quando muito, para garantir sua existência e a existência do redor.

Bom, conscientes do mundo-cão da Colônia, cobiçada e envolvida em tramas inúmeras entre os tantos povos que rodeavam aquele fim de mundo, você contava com práticas e tradições milenares que praticamente todo mundo lançava mão, sem maiores pudores ou reflexões, na corrida pela supremacia econômica do xadrez global.

Uma dessas práticas milenares era a escravidão.

Sem contar com máquinas, operários e CLT, os paulistanos -- assim como as outras grandes nações europeias, ameríndias, africanas e asiáticas -- precisavam dar conta da produção de mercadorias e riquezas, gerando excedentes para o comércio. Para isso, entre outras coisas, lançavam mão da escravidão.

Mas São Paulo era tão periférica que sequer recebia a nata da mão-de-obra escravizada, que eram os cativos da África. Portanto, os paulistanos manda-chuva do pedaço se viravam com a escravização ilegal dos índios, para desespero de jesuítas e da metrópole.

Lembre-se: você é um paulistano da virada do século 17 para o 18. Era um outro mundo. Um mundo cão. Você acha que faria diferente? Ou de que sequer pensaria diferente?

"Ah, mas ver pessoas sofrendo é errado em qualquer situação", você pode dizer. Sim. Concordo com você. E, provavelmente, os paulistanos daquela época também concordariam. Mas lembre-se que o conceito de sofrimento varia de época para época. Hoje, você deve saber, certas práticas de vinte ou trinta anos atrás, familiares à sua infância, são tidas como execráveis. Você, ou a média do povo de outrora, tinham consciência disso? Se sim, vocês eram maus ao praticar ou conviver com aquilo. Se não, só eram diferentes das pessoas de hoje, com outros valores, assim como as gerações futuras serão das de hoje e nos julgarão em muitas de nossas práticas atuais.

As gerações futuras poderão nos julgar por usufruir de trabalhos abusivos, sem direitos trabalhistas, de pessoas que nos servem. Ou de nossas cargas horárias de trabalho. Ou de nossa indiferença às multidões de desempregados, doentes, famintos e viciados que sofrem, agora, a poucos metros de você.

Nos julgarão assim como julgamos Borba Gato e seus iguais.

Graças a Deus, hoje sabemos que escravidão é ruim e deve ser abominada. Por isso mesmo, muitos de nós queimam o Borba e derrubam outras estátuas mundo afora.

Mas lembre-se que Borba Gato era um homem como você, só que há trezentos anos atrás. E muitos dos que odeiam sua estátua e condenam seu modo de vida, reflexo do modo de produção colonial, fecham os olhos ou mesmo abonam modos de vida violentos que homens periféricos e desesperados levam hoje. Dizem que são vítimas do sistema, e que não têm perspectivas de mobilidade.

Certo, sabemos que ainda vivemos num sistema excludente para tantos. Sou do Campo Limpo, da periferia. Sei disso. Fui, sou e serei rodeado por isso. Vivemos no fio da navalha, uns mais, outros menos. Mas o ser periférico de hoje convive com isso.

E os paulistanos de São Paulo colonial, como Borba Gato, não são semelhantes a nós, inclusive nisso?

Como historiador, aprendi que devemos contextualizar a história para entendê-la. E é isso que tento fazer, neste breve e grosso exercício que te proponho.

Por tudo isso, digo: deixem Borba Gato lá. Sua estátua nos lembra o que fomos, e quem somos. Sua estátua é um memorial à nossa humanidade, nossas lutas, anseios, virtudes e defeitos. Borba Gato é a síntese do ser humano, cuja vida traz o Céu e o Inferno consigo. Ele não era pior nem melhor do que nós, por mais absurdo que isso lhe soe. Removê-lo ou retirá-lo de seu lugar não vai mudar o que aconteceu. Sua memória continuará viva nos livros de história, onde talvez desapareça e vire somente uma nota de rodapé.

Virando uma nota de rodapé, talvez nos empobreça nessas reflexões. E a retirada de sua estátua talvez não inspire outros meninos e meninas do Campo Limpo, Capão Redondo e Jardim São Luís a pensarem além das janelas dos ônibus e de suas vidas pobres, de poucas perspectivas.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 28/11/2021
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