Por quê nós?

Minha mãe está com oitenta e nove anos e uma lucidez impressionante. Hoje depois do almoço na casa dela, eu ela e alguns dos irmãos conversamos bastante e surgiram as inevitáveis recordações dos antepassados. Entre tantos que foram lembrados, relembramos a história do bisavô dela, meu tataravô, que conheci bastante, e na conversa conheci alguns detalhes da vida dele que eu não sabia. Que ele foi um fazendeiro que fez diferente de outros irmãos dele, vendeu a fazenda e foi para cidade de Divisa Nova, onde comprou o cinema, foi prefeito, aprendeu carpintaria. Sendo muito bem sucedido foi o primeiro possuidor de um automóvel daquela região, fato que causou espanto, pois o povo do lugar nunca tinha visto um carro e ficaram muito espantados com aquela estranha máquina barulhenta.

Na nossa conversa teve quem não acreditou nesse espanto, eu então disse que não duvidava, pois me lembrei de quando menino e morávamos na roça, embora soubéssemos da existência dos aviões, nunca tínhamos visto um, e quando ouvíamos que passava algum por lá, tão alto que não era possível vê-los, saíamos feito bobos no terreiro gritando: “É o Panair”. Alguém falou nessa Panair e nós não fazíamos a menor ideia do por que desse nome, mesmo sabendo que era um avião. O engraçado é que pronunciávamos o nome exatamente como se escreve.

Essa nossa conversa nos rendeu muitas gargalhadas e inevitáveis choros emotivos, pois eu e minha irmã mais velha nos lembramos e narramos para os outros que nada sabiam, como foi o final da vida desse nosso tataravô, que foi rejeitado pelo genro, e os filhos espalhados, inclusive por outros estados, não puderam fazer nada por ele, e em vez dos vários netos que ele tinha na cidade, nós, eu e minhas duas irmãs, crianças ainda, é que revezávamos para passar as noites com ele em um porão insalubre, sem janela e mau cheiroso, consequência do mofo e da própria situação de um idoso permanentemente acamado. Meu pai, que em meio a tantas responsabilidades, era quem cuidava de banhá-lo e barbeá-lo, dentro do que era possível em um lugar que nem banheiro tinha.

Crianças, fazíamos o que nos mandavam e só hoje na nossa conversa é que nos lembramos de perguntar: Por que nós que morávamos mais longe e não os netos dele, que moravam em frente, do outro lado da rua?

JV do Lago
Enviado por JV do Lago em 28/11/2021
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