Páginas Coloridas

Os olhos da criança se arregalaram num rosto escornado por um cálice de duas mãozinhas. Ela se maravilhava com alguma coisa no livro à sua frente, a primeira de muitas maravilhas a serem experimentadas, e sua alma lhe transbordou pelos olhos. Alguém já disse uma vez que os olhos são as janelas da alma. Concordo. O avô, que a tudo assistia com o assombro de um velho novato, também concorda. Em seus tempos idos, quando um franzino adolescente, o mundo a seu redor mudava. Hoje, ele continua mudando, sempre mudando. Pensa o avô que isso não vai parar nunca. Mas aí vem o futuro bater-lhe nas portas da consciência. “Que velho pensa no futuro?”, ele se inquire, com um peso até injusto. Concorda com o “injusto” e continua seu pensamento.

Quando adolescente, o avô vira chegar os aparelhos desengonçados que serviam para falar à distância. Somente os ricos os possuíam. Em sua cidadezinha, o da sua casa era o de número 12. Era preciso discar pra telefonista, informar com quem se queria conversar, esperar então a telefonista plugar os cabos para completar a ligação. Esse era o primeiro indício de progresso que o avô tinha nas prateleiras da memória, notou. Aquele aparelho de telefone era produzido em fábricas com muitos operários e exigia muito esforço repetitivo para ser concluído. O cabeamento passado pelos postes urbanos levou tempo para ser finalizado e custou caro aos cofres públicos e privados. O adolescente sabia disso pela conversa enervada de seus pais perante as novidades do mundo novo.

A criança passa para a próxima página do livro, o avô observa na companhia de seus devaneios. Pensa ele, num momento de distração, no filho que está numa segunda lua de mel com a esposa. Os avôs e os padrinhos servem é pra isso, tinha o filho brincado. Mas os padrinhos também estavam numa viagem com amigos. Então era ele mesmo, o avô, que deveria cuidar da netinha. “Ora”, pensa, “mas isso é um grande prazer! Tenho minha neta toda pra mim!”. O filho vira o progresso avançar sua marcha com a chegada da televisão. Primeiro sem cores, depois colorida, depois foi emagrecendo até chegar às grandes e leves telas planas. Isto tudo o avô presenciou e continuaram a lhe interessar as fábricas. Agora são todas automatizadas, com mais robôs do que humanos. Os produtos são criados a velocidades estonteantes. E trocados também, assim que um dá defeito, outro pode ser comprado no lugar, não mais se consertam as coisas como no passado.

E a menina continua sua viajem fantástica por páginas de sonhos coloridos e letras grandes. Uma vez, estes sonhos estiveram na cabeça de um velho que, exercendo sua parcela de dotes divinos, derramara-os sobre papéis e mandara-os para uma editora. A editora, também muito robotizada, havia tirado muitas cópias e as vendia a bons preços. Este velho estava feliz com a editora. O avô da menina, quando criança, tivera poucos livros coloridos. Seus brinquedos eram mais madeira maciça do que a celulose dos papéis. Não era de se espantar. Naqueles tempos, os livros coloridos eram caros, havia pouca tiragem, e as crianças se interessavam mais em brincar nas ruas e praças com os vizinhos. São tempos idos, o avô trata logo de espantar a melancolia, a vida de agora é muito melhor do que a de antes, “eu só não tenho mais o mesmo corpo, não sou mais criança pra brincar na rua, mas tenho meus filhos e netos”.

A menina um dia vai pensar, muito depois de o avô partir, em coisas semelhantes. Quando tiver o primeiro filho, o bisneto, a garotinha de então será lembrada pela mãe de agora. Ela lembrará daquele momento, das maravilhas de seu primeiro livro de estórias coloridas numa noite de sonhos com o saudoso avô, que não falava muito naquela ocasião, não com palavras. O avô falava com o olhar, com o sorriso e com as mãos tudo que as palavras falhariam em dizer para a menininha. Ela lembrará da chuva fraca que caía lá fora e da caneca fumegante do avô, no braço da poltrona. E de uma música baixinha, tranquila, ambientando aquela pintura eternizada na memória.

O bisneto, completando 25 anos recém formado engenheiro, comemorou a conquista de uma vaga numa multinacional. Postou sua alegria em todas redes sociais. A mãe vira o surgimento das redes sociais. Ela acompanhara o nascer da internet. Então, de repente, a internet ficara mais acessível, deixara de ser discada, tornara-se barata, rápida, popular. Como num pulo de gato, os celulares deixaram de ser burros e passaram a ser “smarts”. Esta fora uma revolução na vida da jovem mãe, assim como na de muitas pessoas. O mundo passara rapidamente a ser outro mundo com os smartfones. Daí para frente, tudo fora se tornando "smart" muito rápido: relógios, óculos, pulseiras, TVs, geladeiras e até vasos sanitários.

O jovem engenheiro teve seu primeiro filho aos 34 anos. Naquela ocasião, ele e o companheiro resolveram adotar a engenharia genética para escolher alguns traços do filho. Mas o principal, o que mais importava, era combinar o DNA dos dois pais para gerar um filho realmente biológico. Era um procedimento caro na época, mas os pais tinham boas condições financeiras, graças ao sucesso com criptomoedas – que agora já estavam sendo substituídas por uma variante mais vantajosa e menos agressiva ao meio ambiente. Os pais estavam de olho nas mudanças dos ventos, contudo.

Lá atrás no tempo, naquela noite da netinha com o avô, o velho havia continuado seu devaneio. Ele construíra seu pensamento com o que tinha na época. Refletira sobre onde tudo poderia ir parar, pois sabia como as coisas andavam. Analisara fábricas e produtos. Mas o que mais lhe incomodava era olhar pra neta e pensar no lixo, pois é lixo que deixamos junto com nossos filhos no mundo. As indústrias estavam enlouquecidas, os produtos brotavam como mágica. O lixo também deveria sumir como mágica...

O filho dos dois pais, agora um jovem de intelecto notável, pensou o mesmo que o tataravô que nunca conheceu e do qual nem sabia o nome. O lixo deveria desaparecer como mágica, mas não o fazia. Algo tinha que receber este descarte, ou alguma coisa tinha que ser feita com ele. No tempo deste pensamento, o mundo já havia mudado e as nações já tomavam medidas mais drásticas pra controlar a degradação do planeta. Mas, para muitas das maravilhas vislumbradas pelos antepassados, já era tarde demais.

As indústrias agora eram obrigadas a reciclar uma parcela considerável de seus produtos. Mas o aquecimento global já havia feito subir o nível dos oceanos de forma catastrófica em muitos lugares e derretido quase a totalidade do "Permafrost". Os combustíveis fósseis de acesso popular agora já eram proibidos e o sequestro de carbono era muito mais exigido das indústrias. Mas muitas florestas já haviam se desertificado e várias espécies animais haviam já sido extintas. O consumo de carne produzida em laboratório começava a entrar no gosto popular desde as campanhas iniciadas 15 anos antes, mas a camada de ozônio sofria novas e repetidas perdas, trazendo a ameaça do velho efeito estufa de volta. As nações haviam assinado o tratado de cessar a produção de armamentos militares em 25 anos. Isso foi ano passado. Com esse acordo, muito dinheiro sobraria para cuidar dos problemas de escassez de alimentos. Mas as indústrias armamentistas, as mais rentáveis jamais vistas desde a invenção das armas, vão acabar minando este trato nos próximos 5 anos, relembrando ao povo e aos governos que produzir armamento militar é uma necessidade premente. A maior parte dos países já adota um rígido sistema de controle de natalidade auxiliado por inteligência artificial, carinhosamente apelidado de "Mothermind", Mente Mãe. Porém, prevê-se que ainda levará algumas décadas para a superpopulação se estabilizar em níveis humanamente aceitáveis.

O filho dos dois pais viu tudo isso acontecer. Agora, casado com uma linda jovem de 46 anos, esperava a primeira filha deste casamento - aprovada pelo governo. Ele estava no auge da juventude com seus 54. A mãe viveria até os 110 anos, infelizmente abaixo da média de vida daquela época no país onde viviam. Com o agravamento das crises climáticas e populacionais, o abismo social havia crescido no mundo. A maior parcela da população mundial vivia em condições muito ruins. Os negócios andavam apertados para a família e havia a possibilidade de terem de se mudar para um país mais pobre - uma política velada de emigração coerciva, muito comum naqueles tempos...

O livro de páginas coloridas da garotinha antepassada contava uma estória de sonhos com um final feliz.