Domingo e Trabalho

Domingo perfeito, chuva musical, tempo delicioso.

Este era meu domingo, pra fazer dele o que bem entendesse: gozar, vagabundear, viver. Pois não é que deu-se um assalto e o tirou de mim? Se alguém souber, diga-me onde faço o boletim de ocorrência, pois o nome do bandido eu tenho. Chama-se Trabalho Extra. Seu crime é viscoso, espalha-se no dia com preguiça, deixando seu malicioso rastro. Isso porque a vítima acorda para uma linda manhã e logo se lembra do que vai ainda acontecer: esqueça o prazer, você vai trabalhar hoje. O pobre coitado se prepara, então, para levantar.

Às vezes ainda tento. Já ouviu sobre a regra dos cinco minutos? É uma boa tática para ajudar a engolir alguns sapos, entrar numa piscina gelada ou se ensaboar com um ouriço do mar. Funciona assim. Cada vez que você se deparar com uma dessas prazerosas tarefas e, por algum motivo estranho estiver tendo dificuldades em começa-las, se convença de que vai tentar por cinco minutos. Findo esse tempo, as chances de você continuar na tarefa são maiores. Se ocorrer de você desistir, aceite isso e abandone o sofrimento. A consciência é tranquilizada pela sua tentativa.

Então eu uso essa estratégia e trato de passar dos cinco minutos. Não consigo. Chuto o balde, desligo o computador e passo a dedicar-me a coisas mais agradáveis. Agindo assim espero ter recuperado meu domingo. Assusto-me quando percebo que estive enganado! O dia de descanso foi retomado numa breve batalha, mas a reconquista foi pela força, houve sangue e fogo no meu espírito e as muralhas da alma foram abaladas. O dia já não é mais o mesmo: o inimigo ergueu acampamento e agora sitia meu castelo! Ele não vai embora enquanto não for derrotado... ou me derrotar.

Nessa desventura, o trabalho já manchou meu dia perfeito. Rebelde, vingativo, posso não me dedicar à obrigação hoje. Mas isso não trará solução aos meus problemas.

Chegando à casa dos 40, já ouvi muita gente apoiar meu hábito de trabalhar extraoficialmente. Afinal de contas, quando o automóvel é jovem os pneus estão inflados de tempo, a bateria descarrega e recarrega ligeira e os sonhos de futuros brilhantes explodem nas câmaras do motor. Sempre disse para mim e para os outros que seria por pouco tempo: em breve iria parar de trabalhar assim. A primeira vez que disse isso foi há 15 anos. Contando com os anos de faculdade, durante os quais o estudante comumente executa trabalho extra, posso afirmar que há uns bons 20 anos que não tenho um mês sem trabalho extra. Isso dá metade da minha vida. Quando caminhamos de bobeira na chuva rala, chegamos ensopados.

É um papel de parede bonito que disfarça o mofo da prostituição: Trabalho Extraoficial. Trabalhar durante dia e noite no meio de semana e ainda em sábados, domingos e feriados – mesmo que somente em alguns. Invocar prostituição para esta metáfora é como jogar uma lata aberta de tinta para cima no meio da multidão, eu sei. Claramente, tem gente que não merece ser atingida. Muitas pessoas, infeliz realidade, venderiam satisfeitas até seu tempo de sono para sustentar honestamente sua família. A isso não chamo prostituir-se. O trabalho extra ao qual me refiro como prostituição é aquele que pode ser controlado, que é supérfluo, que poderia ser diminuído, mas não o é, por orgulho ou por ganância. Hoje em dia, flerto menos com esta prostituição e estou a caminho de eliminá-la.

A prostituição vem de uma verdade despercebida: troca-se por dinheiro o pessoal e íntimo tempo livre. Quanto custa o seu? Tempo livre é algo de difícil precificação. Por quanto você venderia seu próximo domingo? É provável que por um alto valor. E quanto valeriam 20% dos domingos em um ano? 50%? Valores críticos que definem lucro e prejuízo em um domingo pintam um quadro com números ao tentar retratar uma paisagem que não é feita de números. Pensa-se: neste tempo que tenho sobrando poderia eu estar fazendo dinheiro. Nenhum pecado, nenhum erro. Os problemas surgem quando não percebemos a dosagem e, cegos, ultrapassamos a linha entre o remédio e o veneno. Já tomados pelo vício, logo nos esquecemos de como é ter tempo livre.