Convivendo com o passado

Em tempos de flexibilização pandêmica, depois de passar um bom tempo sem ver a vida do lado de fora, tornei-me “arroz de festa” em tudo que é de programação artístico-cultural, na expectativa de reencontrar nesses eventos pessoas amigas que o vírus distanciou. Exposições (Claustro, de Flávio Tavares foi uma delas), museus recém instalados (O da Cidade de João Pessoa entre eles), lançamentos literários (só os de Marília Arnaud com O pássaro secreto, foram três) além da oportunidade de conhecer, em pessoa, a pessoa que se inspirou no Pessoa para poetizar que “tudo vale a pena se lhe rende um poema”, tudo isso passou a ser o meu luxo.

Uma dessas fugas para a vida pra ver “gente de cara e dente“ foi para a Flit – Feira do Livro Internacional da Paraíba, que teve Marília Arnaud como homenageada e com direito a performances do ator Luiz Carlos Vasconcelos, “transitando no território” de O pássaro secreto, o que só alimentou o desejo de enveredar novamente pela leitura da brilhante obra.

Outro evento foi o lançamento, com sessão de autógrafos, do livro Raízes do cangaço, de Humberto Mesquita, paraibano de Campina Grande, com formação escolar em João Pessoa, no Liceu Paraibano, e que depois de ter passado pelos principais órgãos de imprensa do país, a partir de São Paulo, quase que por acaso interessou-se pelo tema cangaço, resultando os seus estudos no livro que apresentou por aqui. Por razões familiares me agrado do tema, pois tanto meu pai como meu tio foram membros das volantes que caçaram Lampião pelos sertões de Sergipe e Bahia, com as histórias do cangaço fazendo parte da minha memória afetiva a partir dos relatos, quase romanescos, que me acompanharam desde cedo.

Para além do tema cangaço, assunto do livro, sobressaiu a forma como se deu a cerimônia. Na mesa estavam dois ex-colegas do autor dos tempos do Liceu paraibano, setenta anos atrás (isso mesmo, setenta anos), Carlos Pereira e José Octávio de Arruda Melo, ambos se aproximando dos oitenta anos, idade em que os “freios” já estão soltos, permitindo falar o que lhes vêm na “telha” sem as reservas que os de menos idade se impõem. Carlos é um exímio cronista (Crônica da cidade facilmente encontrada nos canais de streamings, com esse mesmo nome) enquanto José Octávio é destacado historiador, além de imortal da Academia Paraibana de Letras. Coube ao cronista a apresentação do autor, e as palavras iniciais foram dedicadas à explicação do apelido que o escritor ganhara nos tempos de escola, com a devida explicação do motivo de tal “honraria”. Foi seguido pelo historiador que tratou de complementar, com outras peculiares, inclusive o seu lado galanteador/conquistador, o que deve ter resultado em algumas perguntas/explicações indesejadas por parte de sua esposa após o evento. É claro que Humberto não deixou barato e na hora de sua intervenção o troco veio na dosagem que as revelações contra si requeriam.

Imagino a “saia justa” pela qual passou o apresentador, pois quando tentava retomar a condução da cerimônia um dos três pedia a palavra para uma nova revelação que o tempo parecia ter esquecido. É claro que em momentos como esses “o pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar” e o filme roda. E se fôssemos nós ali, com os nossos colegas de 50, 60 anos atrás, o que seria relembrado? E as lembranças dos apelidos, o que provocaria no outro, apenas o riso, ou a volta de traumas nunca esquecidos? Seriam enquadrados hoje na categoria bulling ou continuariam sendo não mais que uma brincadeira que a ocasião permitia? O tempora, o mores!

Fleal
Enviado por Fleal em 21/12/2021
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