Encontro em Samarra


       Lembro me de que, em determinada ocasião, constatando a enorme quantidade de livros não lidos em minhas estantes, eu pensei: preciso lê-los antes de morrer.A partir daí eu sempre penso que esse foi um acordo que fiz com a morte. Não vou morrer enquanto não ler todos os livros que tenho. Vira e mexe eu os organizo em ordem alfabética e começo sistematicamente a lê-los. Separo-os em grupos, porque estou sempre com mais de um em minha mesinha de cabeceira: romances, poesias e livros variados, que englobam vários assuntos. Atualmente estou lendo um livro de poesias de Mário Quintana, a História do Cerco de Lisboa, de Saramago e Como Contar um Conto, de Garcia Marques. A ordem não é muito precisa, porque sou adepta de que regras foram criadas para serem quebradas. Além do mais, não consigo resistir a idéia de comprar novos livros. Estou sempre comprando mais do que consigo ler e talvez essa seja uma estratégia que eu tenho para enganar a morte, assim como na história de Xerezade. Todo esse preâmbulo nada mais é do que para falar do livro de Garcia Marques. Ou melhor, falar do que li no livro de Garcia Marques até agora, porque ainda não o terminei. Preciso porém dizer que é a compilação de uma oficina realizada por ele em Cuba, com o objetivo de treinar roteristas e elaborar alguns roteiros para a televisão, de trinta minutos. Em uma certa parte do livro ele conta uma história já conhecida minha e que já foi narrada por vários autores de formas diferentes. Vou contá-la aqui da maneira que GGMarques a contou mas a minha maneira: Apavorado, o servo chega a casa de seu senhor e lhe diz: encontrei-me com a morte no Mercado e  ela fez-me um sinal ameaçador. Preciso ir para Samarra onde tenho parentes,  para fugir dela.  O bom Senhor forneceu  um bom cavalo e dinheiro ao servo, para que fugisse  imediatamente e chegasse a Samara o quanto antes e se livrasse da morte Mais tarde o Senhor indo ao Mercado viu a morte e se aproximando dela perguntou: por que fizeste um sinal ameaçador ao meu criado? A resposta da morte foi: Ora, não foi um sinal ameaçador. Foi de espanto. Tenho um encontro marcado com ele hoje em Samarra e ao vê-lo aqui espantei-me pois não sei como ele conseguirá chegar tão rápido a Samarra.  Garcia Marques conta esta história a respeito de um roteiro que estão preparando: um homem insignificante, ao descobrir que tem uma doença fatal, joga tudo para o alto e parte para uma cidade qualquer em busca de vida, no caso uma mulher. Mas, em vez de vida, esta mulher o leva a morte. Então, eles vão desenvolvendo o roteiro e quando está tudo pronto um dos membros da oficina o chama ao telefone apavorado: nossa história está passando na televisão. Bem, para encurtar, não era a mesma história, era apenas semelhante, mas algumas cenas são tão parecidas que eles a excluem, criando outras. Para dar sentido a esse texto preciso contar que a morte me fascina. Talvez para mostrar-lhe que não me mete medo, eu a trato como se fosse apenas o outro lado da vida. Acontecimentos reais as vezes me pertubam e eu fico pensando neles e de repente me surge uma história, que nem sempre escrevo. Em uma cidade de porte médio como a minha, as tragédias ainda precisam de explicação e quando alguém morre de forma inexplicável, todos tentam explicar: parece que ele ou ela estava pressentindo, e aí, uma série de casos passam a fazer parte da vida de quem já morreu, sem que realmente possa  ou não ser comprovado. Em caso recente, que eu prefiro omitir detalhes por ser ainda muito presente e dolorido, isso aconteceu e ficou em minha cabeça. É a história de uma mulher que, por qualquer razão ainda não definida por mim, que sou dona da História, sabe que chegou a sua hora de morrer. Não que ela queira, ou precise: ela sabe. E precisa ir ao encontro da morte. Só que a morte não quer saber dela e a evita de todas as formas possíveis. E aí, uma série de acontecimentos levam as duas a travar uma verdadeira batalha.Estou com a história prontinha só não sei ainda como dispor as palavras para que fique uma história legal. Sei o começo o meio e o fim. Bem, por que estou contanto isso? Vejam só: eu acredito piamente ( ou seria olimpiamente?) que tudo na vida segue um encadeamento. Há uma razão por trás de tudo, ligações que a gente não consegue perceber claramente. Eu estou aqui com uma história pronta na cabeça, eu me lembro de uma análoga (embora de trás para frente) e aí eu abro um livro (está certo, era o primeiro da fila) e lá está a história que me levou a querer escrever uma história? E quanto a morte? Bem, todos nós temos um encontro marcado com ela.Não dá para fugir.Seja em Samarra ou em qualquer outra parte do mundo.