Sentimentos

...habitam uma dimensão no mundo das coisas que não existem. Não têm natureza própria antes de serem sentidos. São como argila antes de trabalhada pelo artesão. São matéria prima, bruta de significados, virgem de experiências. São gametas, são essência, são primícias. Não se sabe se sua existência precede a realidade, ou se são dela fruto. Assim como não se sabe se as leis matemáticas foram por nós criadas ou se já existiam antes da existência.

Sentimento qualificado, como tristeza e alegria, é fruto do experimentar. É preciso evocar sua essência do mundo que não existe e trabalhar sua matéria bruta até que se integre em algo conhecido. Assim distinto e definido, neste momento passa a morar em nós – habitantes do mundo que existe – e a causar efeitos dentro do corpo.

Sentimento definido é objeto que existe. Possui, no mínimo, uma dimensão: um ponto. Tristeza é tristeza, por mais subjetiva que seja. Alegria é coisa boa, não importando que um a sinta de um jeito e outro de outro. Para aqueles que enxergam um ponto, não adianta tentar observar de outros lados. O ponto não mudará de forma.

No entanto, parece que os seres humanos herdaram – como espólio de divindades olvidadas – poderes de transmutação. Fazer a ignição de tais poderes é transcender a natureza mínima do sentimento. É transformar ponto em linha, linha em plano, plano em espaço. Assim é que sentimentos simplórios como a tristeza e a alegria tomam formas abundantes em lados, cada um com traços de distinta beleza, e fazem arder a fogueira da criatividade, fulgurante de maravilhas.

Aquele que experimenta um sentimento é responsável pela sua dimensão. O sentimento unidimensional invoca, em quem o conjurou, hormônios, expressões faciais, sons, arrepios, lágrimas. Efeitos físicos, corporais, de ordem mais primitiva.

O sentimento de dimensões superiores vai além. A transcendência dimensional causa impactos concretos na realidade:

Resulta na arte das tintas, das esculturas e das palavras.

Resulta em música densa de prazer invisível, ligando uma alma a outra por canais atemporais.

Resulta na beleza do desejo de benevolência, de solicitude e faz acolher a compaixão em nós.

Resulta nas inspirações para a criação de um mundo melhor e mais belo.

Eis o segredo do enriquecimento, pois já foi revelado seu ciclo:

Sentimento está grávido de arte e a arte faz engravidar de sentimento.

Sentimento materializa a beleza e a beleza invoca o sentimento.

Sentimento desperta a benevolência e a benevolência instiga o sentimento.

Sentimento esculpe a caridade e a caridade causa o sentimento.

Sentimento faz o afeto e o afeto afeta o sentimento.

Para transcender, é preciso consumir arte e beleza: da música à caridade, da literatura à compaixão. Somente assim o terreno da alma se enriquece de nutrientes capazes de aumentar as dimensões sentimentais. Feito isso, passa-se a criar arte e beleza, e o ciclo fecha-se com a perfeição da matemática.

Certa vez, o poeta Frei Betto disse mais ou menos assim: "deixar-se admirar e admirar, talvez este seja o sentido de toda a existência".