Roça

Meus pais vieram da roça. Roça é aquele pequeno distrito de uma cidade pequena, que costuma ter uma praça com uma igreja rodeada de casebres, uma mercearia e um badalado boteco – com seus copos americanos e mesa de bilhar e tudo mais. Mas eram de distritos diferentes, pai e mãe.

Meu pai cresceu menino pé-de-couro de tanto jogar bola na terra. Aproveitou sua infância, mesmo com muito trabalho a fazer. Pescou muito, andou no mato, subiu em árvores diversas, azarou as garotas e fez outras coisas que eu gostaria muito de saber. Mais tarde, herdou a loja de roupas e calçados que meu avô fundara na cidade. Após sua partida prematura, meu pai continuou o legado. Logrou muito sucesso, era conhecido na cidade como exímio comerciante, amigo generoso e grande jogador de futebol. Até que o câncer o levou também muito cedo.

Minha avó, mãe de meu pai, vive até hoje com seus 90 anos de boa saúde e adora seus netos, bisnetos e trinetos. Baixinha e risonha, hoje acha ruim ficar em casa por causa da pandemia. Quer sair, andar, bater papo! Nos tempos de minha infância, morava ela numa casa onde assava seus deliciosos biscoitos e fazia as saudosas festas juninas. Foi durante uma destas festas que eu, muito solícito em carregar uma vela acesa em procissão, botei fogo em Santo Antônio. Ele se vingou, mas esta é outra história. O Natal em família era meu sonho de fim de ano: felicidade em sua forma mais pura. A família se reunia e os pais saiam escondidos para abastecer de presentes as árvores de natal. Minha avó é do tempo em que ser saudável é ser gordinho. Nunca fui. Ela vivia me enchendo de vitamina de banana – que eu adorava – e de comidas de todas as formas e cores. Até hoje é assim!

Minha mãe veio de uma linhagem mais tradicional no interior de Minas. Meu avô herdou uma fazenda com aquelas sedes de portas e janelas em batente de madeira pintada de azul, curral para vacas, porcos, lagoas e moinho. A fazenda ainda hoje tem uma joia: uma gruta construída em pedras para abrigar uma imagem de Nossa Senhora, por cima da qual corre uma nascente. Para visita-la, os habitantes da região precisam cruzar a porteira da fazenda - que já não é mais de meu avô. Muros em pedra, construídos pelos escravos como conta meu avô, eu já vi lá, no alto de suas serras. Meu avô hoje sustenta 97 anos com lucidez; independente, cheio de prazer pela vida e com mais cabelos do que eu! Adora ensinar e contar suas vantagens. Chegou a dirigir-se para o Rio de Janeiro, se não me engano, convocado para servir na França durante a Segunda Guerra. No último momento, a guerra terminou. Agradeço por isso todos os dias!

Minha falecida avó, mãe de minha mãe, foi dada a se casar com meu avô ainda muito jovem. Como naqueles contos de época, acredito que tenha sido treinada para ser uma esposa, pois era toda dotes. Andava enfeitada, orgulhosa de sua pose e dona de bons modos. Sabia fazer de queijo a doces, empadões cheios de pimenta e carne de lata. Em minha infância, lembro-me de ficar irritado, pois ela fazia questão de servir o prato de comida. Foram muitos anos até que este costume refluísse. Acho que era sinal de educação, pois ela servia o prato para os adultos também e, depois de limpo, servia outra vez!

Dito tudo isso, posso dizer que tenho um pé na roça também. Ou dois, pra ser mais exato: um de cada lado. Criança, passávamos as férias de início de ano na chácara de minha avó, mãe de meu pai, em seu distrito natal. Este era meu sonho de início de ano. Adorava a reunião dos primos daquela época. A casa era antiga, com cobertura em telhado aparente e fechamento em tela, por onde um ou outro morcego entrava para festejar com a criançada. Se por algum motivo acabava a luz, podia levar até 24 horas para que voltasse. Então acendíamos velas e fazíamos a festa com brincadeiras na penumbra. Sem velas, o breu era denso ao redor mas enfeitado de sons de sapos e grilos. Não era problema para nós, ninguém queria ver TV naqueles dias (nem pegava direito). Tínhamos balanços, redes, besouros e bombinhas (traques) para nos divertir.

Nesta chácara passava um pequeno córrego de água suja. Diziam meus pais para nunca nos molharmos nele, pois a água passava por uma pocilga à montante e estava contaminada. Obviamente, muitas vezes escorregamos e enfiamos o pé lá pra dentro. Eu e meus primos construímos várias barragens para represar e aumentar o córrego, esperando aparecer algum peixe. Não me lembro de ter visto nenhum, mas o fedor aumentou.

No fundo do terreno, havia um bambuzal. Era gostoso andar por entre os bambus, a despeito dos avisos de perigo dos adultos. Durante uma estadia na chácara, que chamávamos simplesmente de “roça”, o tio Cícero (não sei mais o grau de parentesco, mas era distante) fez armas de bambu para os netos mais velhos. Consistiam em um cano grosso de bambu com um rasgo na parte de cima e uma haste flexível dobrada, a qual fornecia o impulso para o projétil. Já velho e cansado, o tio Cícero saia com seu facão, escolhia um bambu e se punha a fabricar o artefato. Quando a haste perdia a flexão, íamos nós atrás do pobre senhor lhe pedir para fazer outra. Não me lembro dele ter negado vez alguma.

Há mais histórias de onde estas saíram. Um dia posso conta-las. Houve um tempo em que eu pensei as haver esquecido. Acreditei guardar somente más recordações de minha infância. Feliz engano! Acho que todos temos nossas boas lembranças. Elas estão aí, em algum cantinho da memória. Pena rapidamente nos tornarmos adultos tão desmemoriados!