Literatura e cinema

A literatura, assim como a bossa nova para Caetano, é f. Diversão e incômodo se juntam e quando o livro se alia ao cinema, a tribulação ganha fôlego. Nos estertores de 2021 os algoritmos da Netflix miraram em mim com um bem direcionado e-mail intitulado “Fernando, achamos que você vai gostar desse filme”, anexando o thriller de “A filha Perdida”, com estreia programada para o derradeiro dia do ano. As imagens remetiam para uma trama instigante (papel de todo thriller, é bem verdade), acompanhada da informação, pra mim mais interessante ainda, de que a indicação era baseada no livro, de mesmo título, de Elena Ferrante. Para quem não acompanha a história, esse é o pseudônimo de uma escritora italiana (ou escritor?) cuja identidade é mantida em segredo, o que só aguçam as especulações sobre quem será. Da sua lavra li “Dias de Abandono”, com a história da esposa abandonada pelo marido com dois filhos, e as repercussões daí geradas. Aliás esse é um dos temas recorrentes em sua obra, enveredando por infância, maternidade, casamento, relações homens e mulheres, sempre de forma crítica sobre como a sociedade trata esses assuntos, com as desditas caindo sempre sobre as mulheres, especialmente as que são mães. O pai pode ir embora? “Tudo bem, desde que pague em dia a pensão dos filhos”. Seu trabalho não é afetado, as viagens, a vida sexual e sentimental, nada “fora da ordem mundial”. O que Ferrante tem feito em parte de sua obra é expor, romper e, vá lá, denunciar o machismo imemorial.

Como o tal e-mail algoritmico citado foi na quarta-feira e com dois dias ainda pela frente para a estreia do filme, a curiosidade foi maior. Amazon e Kindle se uniram e em uma tarde dei conta das quase 180 páginas do livro, ficando agora à espera para ver como seria a transposição para a tela, assinada com roteiro e direção pela atriz americana Maggie Gyllenhaal. Saber que veria em cena Olivia Colman, a rainha Elizabeth das últimas temporadas de “The Crown”, animou, e muito, a minha espera pelo final do ano.

Tendo lido o livro antes, algumas coisas fizeram mais sentido pra mim. Até recomendo: quem puder se segurar, faça isso também, mas adianto que a não leitura prévia não atrapalha o entendimento da história. Após ver a película indiquei-a a pessoas queridas, ouvindo delas comentários tipo, “a vida das mães não é fácil”, e ampliando para “a das mulheres”. Em todos os colóquios o tema “mito da maternidade associado a felicidade eterna” foi recorrente, mas pelo avesso, na calada, como coisa que “anda nas cabeças, anda nas bocas”, e que não passam de “sussurros em versos e prosas” cabendo a Ferrante, de maneira incisiva trazer esse lado “não é bem assim...”. “Abandonar“os filhos, como é o caso de Leda, é impensável para as mulheres, que se tornam “mães desnaturadas”, epíteto que ela mesma se atribui, como mãe muito jovem de duas meninas e que, de repente, por vislumbrar a chance de deslanchar na vida profissional, e ainda mais ao lado de um novo amor, encara o drama concebido pela sua ausência por três anos da vida das filhas. Para a mulher, o mundo desaba sobre si nessa hora. Para o homem, “pero no mucho”, atenuantes não faltam e a nenhum deles é outorgado o título de “pai desnaturado” por igual procedimento. As razões? Quem disse que importam para as mulheres? Acrescente-se ao fato, para a execração pública e total delas, um caso de amor em cena. E razões profissionais, importam? Dedos apontados não faltam. Esconder a boneca? As mães também sabem ser más. “Cai o rei de ouros”. Isso é o de menos, até porque, como ela própria diz, “as coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender”.

A literatura é pra isso mesmo, incomodar. Os escritores que se tornam “deuses” com suas criações, dando forma a vidas com personalidades várias, permitem que essas discussões sejam postas e que até alguém diga, “mas isso é literatura, ficção”. Plausível explicação, mas o fato é que a vida continua imitando a arte por aí afora.

Fleal
Enviado por Fleal em 04/01/2022
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