Com quem será?

Meu primeiro contato com o significado de um relacionamento amoroso foi traumático. No bom sentido, se era que isso existia. Graças a meu Deus, nunca presenciei um relacionamento abusivo ao vivo e demorei para ter contato com o tema na ficção.

 

Acho que seria incorreto associar meu trauma às minhas primeiras experiências entre casais, já que sempre tive meus pais e os filmes que assistia para criar um conceito mais agradável e amistoso da coisa. Porém, tudo isso não era tão memorável quanto o que aconteceu entre meus iguais: meus colegas de turma.

 

Gostar de alguém, independentemente de ser correspondido ou não, era perdição certa. Talvez até fosse possível esconder essa fraqueza e sair ileso. A verdade, contudo, era que um mísero sinal de fraqueza já era o bastante para nascer a suspeita e, sem nem ser necessário comprovar a veracidade, nunca mais ter paz.

 

O destino dos apaixonados era sempre o mesmo: ser zoado até que outra pessoa tomasse o posto de piada da vez. Por isso, sempre tive medo de pensarem que eu tinha interesse em alguém, principalmente se a suspeita fosse infundada. A maior arma de opressão dessas brincadeiras era a famosa canção “Com quem será?”, cantada nos aniversários. Por isso, eu sempre omiti o dia em que nasci dos meus colegas da escola.

 

Lembro que um dia um menino da sala com quem conversava às vezes roubou minha carteirinha e o desespero que me abateu foi sem tamanho porque lá constava minha data de nascimento. Caso ele memorizasse, poderia simplesmente espalhar a notícia e eu seria vítima da mais clássica piada de aniversário desse país.

 

Eu fui atrás dele, esbarrando em várias mesas do ambiente sem nem perceber a dor das batidas. Naquele dia, tudo estava em jogo. Infelizmente para mim, ele já visualizava o dia em questão e eu precisava era conseguir manter o segredo só com ele, até que se esquecesse.

 

Depois de finalmente alcançá-lo e segurar seu braço com força, peguei de volta o que era meu. Estava tensa e sentia o medo correndo em minhas veias, queria me esconder e nunca mais ser vista por aqueles que cantariam “Com quem será?” para mim. Entretanto, tudo que pude fazer foi voltar para o meu lugar e fingir que não havia atraído a atenção da turma inteira em meu ato desesperado.

 

O mais eficiente e menos trabalhoso era ir direto à fonte e cortar o mal pela raiz. Por isso, tomei todas as precauções necessárias para não levantar suspeitas. Não havia um grão de arroz que me desse o luxo de nomear com conhecidos.

 

Um dia, apresentei minha tartaruga de pano para minha melhor amiga. O boneco foi meu brinquedo mais querido durante vários meses. Por isso, merecia conhecê-la. Eu era mais próxima dela do que de qualquer outra pessoa de fora da minha família, incluindo os vizinhos.

 

Nomeei a tartaruga com um de um nome que achava legal e estava animadíssima mostrando meu presente a ela. Até que uma lembrança súbita preencheu minha mente: havia uma pessoa chamada assim na turma! E se ela pensasse que eu gostava dela? Era inaceitável. Fui sincera com minha amiga e disse que não podia contar-lhe o nome do animalzinho.

 

Outra situação em que sempre me policiei foi quando escrevia alguma história para as atividades de português. Principalmente se fosse romance, eu não poderia colocar o nome de ninguém que estava na turma. Ficava vários minutos meditando sobre um jeito adequado de chamar os personagens.

 

Uma vez, fiz uma redação narrativa em que, evidentemente, escolhi um nome para dar ao protagonista. Depois de mostrar a uma colega, a primeira coisa que ela perguntou foi se aquele era o nome que eu desejava ter. Eu amava meu lindo nome Abigail, mas insinuar que eu gostaria de outro estava longe de ser minha maior preocupação. E se, além de associar-me àquele personagem, conseguisse perceber analogias em outros integrantes da trama também?

 

Mesmo com todo o meu esforço para evitar essa situação, minha segurança parecia ir por água abaixo. Estava um pouco com medo e um pouco com raiva por tamanha comparação e declarei com todo o meu espírito que nada tinha a ver.

 

Naquele texto, não existia casal. Ou se havia, já o esqueci. Entretanto, quando o romance foi o tema explícito do exercício, eu senti o desespero dominar e senti mais dificuldade com os nomes do que com a criação da trama em si.

 

No sexto ano, a professora passou um jogo divertido em que respondemos perguntas sem sentido aparente e, após ela explicar o significado de cada item, entenderíamos o que as respostas significavam. Tudo o que ela adiantou foi que seriam detalhes importantes para a criação de um texto romântico que deveria ser produzido logo em seguida.

 

A primeira coisa que nos pediu foi a escolha de um nome. Era o item mais fácil de deduzir o significado já que obviamente aquele seria o nome de um personagem. E se, mesmo não utilizando um nome que ninguém do grupo possuía, me acusassem de algo? Afinal, poderia ser um dos meus vizinhos que eles não conheciam…

 

Decidi por utilizar o nome do meu pai, pois caso viesse um interrogatório poderia utilizar essa justificativa para dispensar as suspeitas. Seria estranho se pensassem que eu estava apaixonada por ele. Por sorte, ninguém leu o texto daquela pequena tarefa e eu fiquei em segurança.

 

Talvez todos os meus receios parecessem em excesso, porém aquilo que eu desejava evitar era bastante real e eu já vi acontecendo.

 

No ano seguinte ao que realizei o exercício do texto romântico, surgiu a história de que a Lavínia e o Leandro gostavam-se. Não sei de onde veio essa informação, nem se era verdade ou não. Descobri a fofoca toda quando já era impossível que não fosse de conhecimento geral. Nesse caso, sendo verdadeiro ou não, os dois não podiam dizer um “A” que todos já começavam com insinuações irônicas e humilhantes. Os coitados não tiveram o mesmo jogo de cintura que eu para esconder o segredo mais sujo que provavelmente já carregaram até aquele momento.

 

O pior foi que a coisa se agravou quando Juliana entrou na história. Nunca soube se realmente existiu algo entre os dois personagens mais antigos, porém esse novo integrante realmente teve um relacionamento mais explícito com Leandro para os espectadores da sala de aula. E bastava que cruzassem os olharem para surgir alguém dizendo à Lavínia, com a maior expressão de diversão:

 

— Olha aí! Ele já está traindo-lhe!

 

O novo casal foi destinado a mais vários meses de sofrimento, contudo, talvez houvesse uma solução para o cruel fardo dos apaixonados. Afinal, quando Lavínia apareceu ao lado de outra pessoa, não recebeu o mesmo destino que compartilhou com sua antiga paixão.

 

Enquanto eu ficava sempre tensa ao encará-los esperando a piada chegar, eles pareciam felizes e, principalmente, seguros. Foi o meu primeiro contato com apaixonados que foram deixados em paz. O que eles tinham era harmônico o suficiente para eu desejar ter também.

 

Um deles era uma boa pessoa porque, quando me viu solitária e infeliz, negou a companhia de seu companheiro especialmente para papear comigo. Tentei dizer várias curiosidades para prendê-lo comigo, mas só funcionou até certo momento. Por fim, eu não resisti e perguntei, emocionada:

 

— Como… como é estar com alguém?

 

— É maravilhoso! — disse com ar sonhador.

 

De qualquer modo, todas as minhas táticas mostraram ser eficientes, porque saí ilesa das duas encruzilhadas de “Com quem será?” que a vida me impôs. 

 

Quando chegou na parte de comentar o suposto nome de com quem eu supostamente casaria, as três pessoas as quais desejavam rir de mim simplesmente encararam-se confusas perguntando-se:

 

— A Abigail gosta de alguém? — Não pude conter uma risada prazerosa diante dessa grande vitória.

 


 

O meu tempo de escola

Não misturei com paquera

São diferentes quimeras

Amor tem juros de mora...

 

(interação do poeta Jacó Filho)