Voltar é preciso

 

“A que distância deixaste o coração?”

Tolentino

 

          Não faço ideia de quantas vezes ele aparece ao longo da Sagrada Escritura. Também desconheço seu significado etimológico ou filológico, seja em hebraico, seja em grego, seja em latim e, por isso, não sei se a que se usa é a melhor tradução. Mas, a despeito de toda esta minha ignorância, chamou-me a atenção este verbo: “Jesus voltou para a Galiléia” (Lc 4, 14). Quantas vezes e em quantos momentos é preciso voltar a lugares, emoções, lembranças, verdades, escolhas... onde há raízes, significados, motivos sempre nos esperando outra vez. Esse movimento de retorno é imprescindível à alma. Mario Quintana diz que “é preciso escrever várias vezes um poema para dar a impressão de que foi escrito pela primeira vez”. E, nas coisas sérias da vida, com as quais escrevemos nossa poesia, não dá para continuar sem voltar.

 

          A liquidez dos nossos tempos e das ocupações que nos tomam, a pressa para tudo, o caráter volátil dos relacionamentos, a engrenagem voraz das atualizações do status unida à desnecessária necessidade de tornar tudo público com uma foto – o prato de comida, o passeio, a caneca de café, o espelho narcísico do quarto, o caminho para o trabalho, o cachorro, um livro que está lendo, uma frase de efeito, qualquer coisa inútil, uma taça de vinho... [impossível elencar tudo aqui]. Ainda: a fugacidade da moda, o perigoso universo das novidades sociais, o primado do estético em detrimento do ético, entre outros, deixam-nos em um tal estado de inércia que facilmente descuidamos dos saudáveis retornos. Esse ritmo frenético não sustenta nossas raízes, deixa tudo tão fugidio, fazendo com que desculpas e justificativas borbulhem a todo instante, impedindo-nos de voltar às essências. E, assim, continuamos o caminho, a qualquer custo e de qualquer jeito.

 

         “Ele voltou para a Galiléia, para Nazaré, onde se tinha criado”. Todos temos uma Nazaré para onde retornar e de onde partir novamente. É a terra sagrada das decisões fundamentais, o solo fértil onde alegrias continuam plantadas e floridas, o produtivo campo de muitos frutos já colhidos ao longo do caminho, o agreste território das dores, das lutas, dos obstáculos, das lições. É lugar de uma bela amizade, de olhares profundos, de sinais, de verdades, de beleza. O Senhor nos ensina que é preciso voltar ao ponto onde as coisas foram gestadas, paridas, fincadas. Este percurso interior, existencial, místico e, às vezes, também geográfico, devolve-nos muitas coisas. De fato, nem sempre é tarefa fácil. A volta também leva consigo nossos erros, os desvios, as lacunas, as distrações, um anjo tentador cheio de artimanhas sedutoras, quem sabe algum peso de consciência... Destas dificuldades estava livre o Senhor, óbvio. Contudo, Ele retorna para nos mostrar o caminho – ou, para nos recolocar no caminho, pois, Ele sabe que sem voltar não é possível continuar.

Padre Fernando Steffens
Enviado por Padre Fernando Steffens em 07/01/2022
Código do texto: T7423605
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