Palavra Solta – os bois na cidade

Palavra Solta – os bois na cidade

*Rangel Alves da Costa

Chamei os bois e disse-lhes: “Por favor, venham aqui fazer uma pose, pois preciso tirar um retrato e depois contar uma história. Mas acredito que vocês vão ouvir sem acreditar”. Então os bois se aproximaram contentes, todos garbosos e até sorridentes. Os dois ficaram numa pose que mais parecia em passarela, até dizendo que apagasse as fotos que ficassem ruins. Confirmei que sim e fotografei. Depois contei a história, dizendo: “Hoje vocês estão passando numa rua que antigamente era somente dos carros-de-bois, das carroças, dos jegues, dos cavalos, dos animais. Hoje vocês estão puxando carroça, o que é um desmerecimento ao porte e à beleza que vocês têm. Bois como vocês, assim tão portentosos, faziam fama por todos os sertões. Os carros-de-bois que guiassem pareciam ranger até diferente. E que bela imagem recordar aqueles carros antigos cortando estradões, adentrando na cidade carregados de milho, feijão, palma, capim, tudo o que houvesse para ser transportado. As rodas adornadas de ferro batido por bom ferreiro. Os gemidos tão conhecidos e tão saudosos. Os rangidos leves, lentos, compassados, como se obedecendo a uma partitura de areia e chão. E lá em cima o carreiro com açoite e vara de ferroar. Mas nem precisava ferir o lombo nem açoitar. O carreiro sabia o tempo do boi, o esforço do boi, o sacrifício do boi. Ele conhecia a sede e a fome do bicho. E por isso mesmo, após a viagem e a descarga, o merecido descanso debaixo do pé de umbuzeiro. E solto da canga, livre das amarras, o bicho andejava pelas pastagens matando a fome, e lentamente indo para o tanque de água pouca para matar a sede. Mas hoje os velhos carros-de-bois quase não existem mais. Também os velhos carreiros descansaram suas armas de carrear. As estradas, antes envoltas nos rangidos melodiosos, silenciam saudosas e entristecidas. Para depois serem cortadas nas veias pela passagem das motos e seus roncos ensurdecedores. Tempos outros, e muitos diferentes daqueles de carros-de-bois nas estradas e de uma vida tão sertaneja que jamais se imaginaria que até o vaqueiro quer pegar o boi em cima de uma moto. Hoje vocês ainda vivem na história, mas amanhã estarão somente numa ou noutra memória”. E, depois de ouvirem cabisbaixos e entristecidos o que falei, os dois bois se despediram sem dizer palavra. Seguiram adiante sem ranger as rodas, sem o cantar solene. Apenas seguiram. Mas eu ouvia um soluço amargo.

Escritor

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