Mudanças na paisagem

A mudança na paisagem é apenas uma das consequências dessa pandemia. Aqui não me refiro à passagem de algo inanimado de um lugar para outro. Falo do lado humano, de tirar uma pessoa que estava ali naquela paisagem social, na família, no trabalho, na comunidade, há anos, e que, de repente, foi subtraída pela doença, ausentando-se dessa convivência. Foram as vidas tiradas de cena pelo vírus, em suas diversas cepas, que provocaram, de maneira definitiva, a alteração na paisagem que elas compunham.

É fácil atestar isso. Basta lembrar de seu ambiente de trabalho, como era há dois anos. Uma foto desse espaço falará por si. Veja as pessoas que lá estão fotografadas. Procure por elas agora. Ainda estão todas por lá? É provável que algumas tenham sido “apagadas”, como naquelas fotos após o fim de um relacionamento, em que uma das pessoas separadas se apressa em cortar com a tesoura a pessoa saída da sua vida. Isso, claro, quando se revelava fotos, pois hoje basta um clic para apagar toda essa memória da vida, presente nas redes sociais. É a morte simbólica. O interessante é que, nesse caso, como o amor tem seus mistérios, essa foto pode ser repetida, um recomeço é sempre possível, já que a pessoa não morreu fisicamente, apenas no relacionamento, ao contrário da morte provocada pela pandemia, que é definitiva, aqui na terra, no plano físico. As fotos de família de festas recentes passadas, o Natal por exemplo, também são bem ilustrativas dessas perdas.

Mas algumas dessas alterações no cenário podem também ser temporárias, movida por alguma razão, mas que para o outro que não sabe o motivo, acaba parecendo ser uma mudança definitiva. Explico: Nas diversas fases dessa pandemia, especialmente em seu momento mais crítico, o inicial, antes das vacinas, as pessoas costumavam se isolar. Umas por receio natural de perder a vida, outras por temor das regras impostas pelas autoridades, e ainda outras pelo cerco familiar. O fato é que as pessoas “sumiram” da paisagem social em que antes figuravam. As caminhadas na praia, por exemplo. Pessoas que se encontravam diariamente, de repente passaram a não se ver mais, estimulando a dúvida atroz: e cadê fulano ou fulana que nunca mais eu vi por aqui “andando como se estivesse procurando endereço?”, olhando de um lado pro outro, cumprimentando a todos com o seu bom dia, ou como vai?, será que se foi? E “de repente, não mais que de repente”, com o arrefecimento da pandemia, muitas “ressurreições” aconteceram. E “é chegada a hora de escrever e cantar” sobre a felicidade de saber o quanto se é notado e que não se passa despercebido aos olhos alheios, que as pessoas percebem a sua ausência.

Foi assim comigo e com um casal que, de tanto nos encontrarmos às cinco da manhã na caminhada, os protocolares cumprimentos iniciais tornaram-se efusivos com o passar do tempo. A alteração na rotina provocada pela pandemia, provocando a troca no horário da musculação, que agora é mais cedo por conta da aglomeração, acabou provocando o desencontro. E assim foram meses sem que a saudação matutina voltasse a acontecer. E depois de mais de ano o reencontro aconteceu, trazendo em si a surpresa e a alegria que, mesmo sem ser verbalizada, implicitava um “que bom saber que você está vivo”.

Pois é, esse vírus é assim, traiçoeiro como os bandidos costumam ser para pegar um desprevenido. Basta sumir um pouco da vista de alguém, alterar a paisagem sem a sua presença, que a dúvida não tarda a aparecer: será que foi vencido pela Covid 19?

Que bom que continuamos vivos e nos encontrando nas caminhadas. A ciência tem ajudado muito para que isso aconteça. As vozes contrárias não vencerão. Passarão, assim como a caravana que deixa pra trás os cães que ladram.

Fleal
Enviado por Fleal em 25/01/2022
Código do texto: T7436774
Classificação de conteúdo: seguro