"CONFUSÃO DE LÍNGUAS ENTRE OS ADULTOS E A CRIANÇA"

Assisti esta cena hoje e resolvi descrevê-la a vocês, sob forma de crônica, meus amigos recantistas. 

Os adultos quando falam, dizem em seus “não-ditos” e “entre-linhas”, muito mais do que simples palavras. Eles expressam também emoções, narcisismos e paixões, pela forma de olhar, pela entonação de voz e pelas palavras ditas. Existe um autor psicanalista chamado, Sandór Ferenczi, que estudou essa confusão na linguagem do adulto e da criança e denominou a linguagem dos adultos de “linguagem da paixão”. Esta guarda em seu bojo um excesso de significações que vão além das palavras ditas. Já a linguagem da criança, denominou de “linguagem da ternura”, pois é ainda desprovida de significações alusivas a códigos sexuais, sensuais ou narcísicos, e resume-se ao sentido mais imediato das coisas. 

Por conta dessa diferença de códigos de linguagem entre o adulto e a criança, às vezes, acontecem pequenas confusões de comunicação no dia-a-dia. Vejam esta que presenciei: 

Numa festinha de criança, os pais e avós, competiam sutilmente uns com os outros, pela beleza e inteligência de seus rebentos que lhes imputavam pontos cada vez maiores aos seus narcisismos. Pegando carona de volta com um casal, cuja filhinha tinha cerca de dois anos e ia meio sonolenta no banco de trás do carro junto com sua avó, escutei o seguinte diálogo: 

- Puxa vida! Você viu como a Juju se esbaldou nesta festinha de hoje? Cantou e dançou sem parar! - comentou a corujíssima mãe ao pai que tentava se concentrar no volante. 

- Claro que sim! Só deu ela mais uma vez. Essa menina chama a atenção por onde passa ...... puxou ao pai ! - respondeu o não menos coruja e bastante narcísico pai. 

- Pelo que eu saiba, quem gosta de dançar e cantar sou eu .... É claro que a Juju puxou a mim! - retrucou a mãe não menos vaidosa e já iniciando uma daquelas discussões infindáveis sobre quem seria o melhor dos dois. 

- É, mas quem tem carisma e faz tudo bem feito sou eu – responde o pai fanfarrão – Juju, você puxou ao papai, não foi?? 

- Pussô papai, não !...- responde a criança, amarrada no cinto de segurança de sua cadeirinha no banco de trás do carro, com expressão de sono e cansaço.

 - Eu não disse !? – gritou vitoriosa a mãe com um largo sorriso no rosto – Você puxou à mamãe, não foi Jujuzinha?? 

- Pussô mamãe, não ! – respondeu um tanto irritada e ainda sonolenta, a menininha. 

_ Ora, é claro que a Juju não puxou a vocês dois. Acontece que ela sabe exatamente de onde vem o gen da sua sociabilidade e alegria. Foi à vovó que você puxou não foi meu amorzinho? – diz a avó que ia também no banco de trás cumprindo com sua função de acarinhar e paparicar sua primeira netinha. 

- Pussô vovó, não!! – responde a disputada menininha parecendo estar perdendo sua angelical paciência.

 - Mas, então a quem você puxou Juju? – pergunta a mãe curiosa. 

- Pussô Calol !..... – responde a linda menininha depois de um momento de hesitação. 

- Quem é “Calol” ? – pergunta a avó. 

- É Carol. Uma coleguinha dela da creche – responde a mãe – a recreadora disse que ela adora a Carol ! 

- Ahhh..... – foi o que se ouviu sob forma de suspiro tanto do pai quanto da avó. 

- Ela é muito pequena, ainda não sabe o que é isso! – conforta a mãe. 

Silêncio no carro. A brincadeira parecia haver terminado. Mas, a vovó não parecia satisfeita. Minutos depois: 

- Jujuzinha, vovó ama você! E você puxou à vovó, sim! 

- Não!! Num pussô vovó!!

- Puxa vida Juju, mas você não quer puxar à vovó? Só um pouquinho? 

- Num quelo! ..... 

- Mas a vovó quer, só um pouquinho, tá bom? Olhe que eu compro tantos brinquedos pra você...- apelou - Você puxa à vovó só um pouquinho? 

- Tá bom ..... – responde a menininha ainda meio sonolenta e parecendo entender que ia fazer uma concessão ao pedido da insistente avó. 

- Viram? A Juju vai puxar à vov...... aaii!! Que é isso, Juju ? Você está puxando o cabelo da vovó?!? 

- Juju pussô vovó ! Pussô Calol e pussô vovó, rssss.... 

Neste momento ficou claro que a menininha, na sua linguagem e entendimento, falava de outra coisa bem diferente da linguagem cheia de vaidades daqueles adultos. A criança falava do verbo “puxar”, enquanto os adultos falavam de “herança”, de “tendência de caráter”, e não se deram conta que a criança ainda não tinha a maturidade para entender o significado mais além daquela palavra.
 
Rio, nov/ 2007