ESTRELALICE_ DUAS ESTRELAS

ESTRELALICE

(Crônica de 2007)

Norma Astréa Nunes Grünewald

Toda terça-feira lá estava ela bem à frente da fila de sua turma, aguardando o momento especial para soltar a sua voz. Um tamanhinho de gente, 11 anos talvez, parte dos cabelos amarrados como um rabinho de pônei... a seu lado a inconfundível mochila com rodinhas. Atrás de si estava sempre Marília, sua fiel amiguinha.

Tia Celi Gomes comandava a criançada, batia palmas, orientava, fazia de uma mesinha de concreto, disposta no jardim, um ponto privilegiado de observação. Uma vez conferido se os bonés tinham sido tirados das cabeças, se as fileiras estavam certinhas e se havia silêncio suficiente, ela autorizava o início da solenidade semanal.

Próxima às bandeiras, eu assistia a tudo, sempre ladeada por dois alunos, diferentes a cada semana, quase sempre envergonhados, pensando que civismo era o mesmo que “pagar mico”.

“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas, de um povo heróico o brado retumbante, e o sol da liberdade em raios fúlgidos brilhou no céu da pátria nesse instante...”

Da minha posição, eu podia ouvir sua voz melodiosa e me enternecia. Enquanto cantava, ela balançava a cabeça em compasso com o hino, o que me recordava o cantor Steve Wonder.

... “ pátria amada, Brasil!”

No alvoroço natural da dispersão, eu sabia que Marília a ajudaria a subir as escadas, mas que se porventura não pudesse fazê-lo, ela conseguiria chegar à sala de aula, pois sabia quantos degraus e passos eram necessários para encontrar sua carteira na 5ª B.

Assim era Alice, uma garotinha a quem Deus nunca permitiu ver os passarinhos que saltitam e trinam, nem os matizes de verde do jardim do Colégio Cristo Rei, nem o azul ou o chumbo do céu e nem as cores dos lápis que ela tanto gostava de usar para desenhar. Deu-lhe, entretanto, uma inteligência surpreendente e um jeitinho carinhoso e cativante.

Suas avaliações exigiam que alguém fosse os seus olhos e a sua mão... Era necessário ler para ela os textos, descrever as figuras, passar os comandos... às vezes era preciso conduzir suas mãozinhas sobre os meridianos, os paralelos, as regiões do Brasil... E a matemática? Alice era “cobra” e resolvia a maioria das questões aplicando raciocínio lógico. Quando ignorava algo, fazia um muxoxo, ficava chorosa e murmurava sumidamente: ‘Não sei, tia Norma!”.

Prazeroso era ver a agilidade com que ela escrevia na máquina Perkins Brailler. Quando imaginava que escrevera algo erroneamente, interrompia a tarefa, procurava com os dedinhos a linha em questão, apagava com a unha do indicador os pontinhos de Braille que ela considerava errados e os refazia.

Em momentos assim, era inevitável pensar nas outras crianças que podiam ver os animais, apreciar a natureza, assistir aos filmes, ver os esquemas gráficos que são desenhados no quadro de giz pelos professores, ver gestos e fisionomias tão importantes para a real compreensão e fundamentais para o processo ensino-aprendizagem.

Apenas fitá-la me fazia lembrar dos alunos que apesar de terem todos os sentidos perfeitos, não reagiam em termos cognitivos, porque, às vezes, lhes sobravam boas vidas, mas faltavam-lhes amor e atenção da família.

Hoje, 05 anos após essa imagem, eu não tenho mais de cantar o hino nacional, às 7 horas. Alice deve ter 16 ou 17 anos e, talvez, ainda more em São Mateus, para onde se mudou em 2004, acho.

Por pelo menos 04 razões, ainda penso que ela tem muita sorte: a) nunca precisou ver a hipocrisia, a falsidade ou a desfaçatez estampadas nos rostos dos deficientes de coração, de solidariedade e de compaixão; b) seus demais sentidos sempre lhe permitiram que ela ouvisse melhor, tudo o que não conseguia ver; c), apesar de ter pais humildes, eles eram extremamente batalhadores e encontravam tempo para orientá-la e fazê-la feliz; e d) ela podia contar com Marília, que de bom grado lhe “emprestava” seus olhos e dava amparo em sala de aula.

Nunca mais a vi, mas espero que ela continue dócil e cumprindo aquilo que ainda acho que Deus quis dela ao negar-lhe o sentido da visão: que ela fosse como uma estrela, que o seu rosto irradiasse uma luz própria e que, ao fazê-lo, nos contagiasse e nos ensinasse a importância da solidariedade e a relatividade da felicidade.

DUAS ESTRELAS

Recentemente, eu estabeleci contato com Gildice Bolsanello e fiquei muito feliz ao saber como estão as queridas protagonistas dessa crônica acima.

Gildice me informou que sua filha, Marília, é engenheira mecânica, fez mestrado e pretende concluir o doutorado em Tecnologia Nuclear na USP, com pesquisa na Universidade La Laguna, na Espanha.

A mãe de Marília, também me enviou o link de um vídeo do Facebook em que Alice aparece agradecendo à Cristiana Mello Cerchiari o fato de ter sido sorteada com uma “Linha Braille”. Nele ela fala o quanto este equipamento lhe será importante, e informa que hoje ela cursa Ciências do Estado pela UFMG.

Que Deus continue abençoando muito essas duas estrelas!!

P.S1: Linha Braille é um equipamento eletrônico que transforma o conteúdo em informação tátil, exibida dinamicamente em Braille. É ligado ao computador por cabo, que possui uma linha régua de células Braille, cujos pinos se movem para cima e para baixo, representando uma linha de texto da tela do computador. Esse aparelho custa entre R$7.000,00 e R$25.000,00, dependendo do modelo.

P.S 2: Cristiana Mello Cerchiari é a idealizadora dos sorteios de Linha Braille, a partir de doações feitas por qualquer um de nós, por diversos meios, sendo o mais fácil deles o PIX: sorteiolinhabraille@gmail.com

NORMA ASTRÉA
Enviado por NORMA ASTRÉA em 04/02/2022
Código do texto: T7444569
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