CONTRASTES

CONTRASTES

A manhã escorre em azul sobre a cidade, ainda que - precoces - algumas quaresmeiras vestidas de roxo, chorem antecipadas o luto da semana santa.

Um ar abafado . Vez e outra, refresca-se à uma rajada de vento e a vida vai seguindo o seu rumo em meio ao burburinho das ruas.

Pardais pelos telhados, cheiro de fritura no ar, freadas, businas...Coisas do dia à dia.

Num enderêço elegante, ardósias desenham caracóis pela grama. Jardim bem cuidado, ipês, alamandas e ... melancólicas quaresmeiras (chorosas).

O portão eletrônico vomita um luxuoso carrão recheado com não menos luxuosa silhueta feminina espargindo “Givenchy” sobre o pranto das quaresmeiras.

Altiva e arrogante, ganha a alamêda ajardinada.

O asfalto agora lhe pertence, as cores da manhã são sua propriedade, as melhores lojas lhe aguardam, tapetes vermelhos rolarão ao seu encontro e bajulações lhes cercarão.

[ A dureza da vida que pisa as calçadas é tão somente um mero detalhe a enfeiar a paisagem ]

O automóvel distancia-se do seu enderêço deixando para trás

um dálmata, afrescalhado ,a sonhar com outros “cem”, esparramado na primeira pedra de ardósia ao lado do portão social.

Inadvertidamente, deixa pender para fora do gradil uma de suas bem cuidadas patas.

Um vira latas, passante, sente-se atraído por tamanha finèsse. Não satisfeito com o uso de seu precioso faro tasca uma generosa lambida na pata branca e preta.

O dálmata retrai-se aterrorizado – e num “ui!!!” clama por segurança.

O vira-latas, num jeitão meio debochado, desenha alguns rabiscos líquidos logo no primeiro poste e segue o seu caminho.

A cidade lhe pertence ! – De fato e por direito –

Sortidas, tombar-lhe-ão as lixeiras de tôdas as ruas. Ainda que não lambam-lhe a pata, será sempre livre para esparramar-se no canto que melhor lhe convier.

É um boêmio ! E, como tal, um sonhador respirando ares de plena liberdade.

Pára na primeira esquina, abana a cauda e late ( para ou contra ) algum vulto que apenas a sua percepção de cachorro é capaz de captar.

Se traduzidos, seus latidos certamente falariam de desigualdades, mas exaltariam

a possibilidade de mijar em todos os postes e fazer a côrte à todas as cadelas que lhe cruzassem o caminho e

a graça de delinear a geografia da cidade apesar da vida aparentemente dura.

(Da série:Pequenas crônicas do cotidiano)

04/02/2011

IRATIENSE THUTO TEIXEIRA
Enviado por IRATIENSE THUTO TEIXEIRA em 05/02/2022
Código do texto: T7445204
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