ELA FOGE DA LUTA, SIM, SENHOR!

Era fim de tarde de uma linda terça-feira de outubro. O sol já se ofuscava e como de costume, as amigas aguardavam Lina na esquina. Kelly, Nira e Gercina eram companheiras de caminhada das tardes de terça e quintas-feiras de Lina. Para ela, esse momento era um refrigério, uma renovação mediante as lutas diárias que costumava enfrentar.

Lina colocou a sua roupa mais leve, tênis azul, amarrou o seu cabelo e com um sorriso no rosto, foi ao encontro das amigas. No rosto, além do sorriso, o cansaço diário era evidente. Suas mãos estavam pesarosas do esforço da limpeza da casa, de tanto lavar roupas e louças, numa árdua rotina que a caminhada ganhava força como meta semanal.

Andar era maravilhoso para Lina. Andar de modo livre, sem ter que falar somente de sua caminhada de luta em prol do seu filho que tem deficiência. Uns instantes sem falar das peregrinações em busca de tratamento médico e terapêutico, sem tocar nas angústias. O filho de Lina apresentava comprometimento na fala e comportamento. Ela não sabia, mas aquele momento era um libertar. Mesmo que fosse por milésimos de segundos, esse era um momento para agradecer a Deus, ou seja, ela tinha uma oportunidade desejada por muitas mães de pessoas com deficiência.

Afinal, se tinha algo naquele dia que ela podia se orgulhar era desse privilégio, ter como se renovar. Sempre recordava que já teve tempo para o autocuidado e alimentava uma vontade enorme de conseguir tomar um café com amigas, ou mesmo ir no Salão Pop cuidar dos cabelos com sua cabelereira preferida. Lembrava até mesmo das gargalhadas e fatos curiosos que as pessoas contavam entre si e que ela de modo bem sutil ouvia tudo. Era engraçado até lembrar desses detalhes. Ela também lembrava da mudança brusca na sua vida assim que adentrou nessa nova experiência, a descoberta do diagnóstico de autismo do filho Léo. Ter conhecido o lado duro da vida a tornou firme para a luta.

Lina sabia bem que para ela aquele momento significava uma grande vitória. Seu filho caçula, Léo, está na juventude e seu percurso de vida traz avanços conquistados com muito empenho dos profissionais especializados e dos familiares.

Léo, adquirira mais independência, e podia ficar uns instantes com os irmãos sem prejuízo algum no seu comportamento. O momento da caminhada representava que os irmãos cresceram e se disponibilizavam a ajudar. Ela não estava sozinha. Os seus outros filhos podiam colaborar para que ela conseguisse cuidar de si mesma.

Por vezes, encontrava pessoas que a conhecia há mais de vinte anos e se admiravam com sua quietude. Ela cansou. Cansou de tudo. Cansou até de lutar por melhores condições de vida para seu filho com deficiência. Decidiu só esperar as benesses provenientes da luta de outros. Para ela, reconhecer que já lutou dá conforto a seu coração, bem como a faz lembrar das muitas decepções que passou na vida.

Às vezes sua memória resgata um dia que teve que aguardar por seis horas para falar com um representante da sociedade que agendou recebe-la. Ela lembrara que ele pediu que levasse tudo por escrito que logo seria atendida. Mas não foi assim. As horas se passaram e o que ganhou foi muito aborrecimento por não ser atendida e ao chegar a casa desabou no choro sentindo-se enganada, perdendo seu precioso tempo com uma situação sem resultados.

Lina fugiu da luta mais ampla porque não suportou as nuances do movimento, cansou de bater em portas e aguardar por respostas que pareciam não vir. Por vezes se sentia humilhada chegando a dizer a célebre frase: por que tenho que passar por tudo isso?

Ela adoeceu. A alma estava ferida de tanto presenciar reinvindicações, e ao mesmo, tempo ouvir suas amigas desabafando dificuldades semelhantes as suas . As histórias se repetiam ano a ano, parecendo que para esse assunto o mundo não evoluía.

Isso não quer dizer que ela deixou de acreditar na luta, mas sua mente estava cansada e precisava desfocar. Daí a importância de caminhar conversando com amigos do bairro sobre assuntos diversos. Nossa! ela não sabia que a padaria tinha mudado de endereço. Não sabia também que a vizinha precisava de apoio, pois tinha diagnóstico de câncer.

A sua vida por longo tempo só se resumia em se deslocar de ônibus coletivo para as terapias com seu filho. Cada viagem vivia árduas experiências, desde suportar os olhares com os que se incomodavam com as ecolalias do seu filho, bem como ter que manejar difíceis comportamentos dele em meio a esses olhares.

Certa vez, quando ele tinha seis anos, ritualizou a cor do ônibus e não aceitava pegar outro que não fosse da cor amarela .Ela passou por perrengues e quando chegava em seu lar, os braços estavam doloridos dos movimentos bruscos que ele fazia em cada momento que ela tentava convencer seu filho a subir no ônibus. Durante anos, quatro dias por semana, era essa sua dinâmica de vida.

Por vezes, chorava em secreto, precisava cuidar dos seus outros filhos, Manu e Lucas, e não queria que os vissem chorando. Na verdade, não havia tempo para chorar. Ela precisava pelo menos enxugar o rosto e demonstrar que estava pronta para o dia seguinte. Manu já estava na adolescência e com dificuldade de aprendizagem, esboçava vergonha perante os colegas. Lucas, tinha um jeito leve de se comunicar com o irmão com deficiência. Fazia cócegas e brincava na hora da alimentação. Esse esforço do irmão deixava sua mãe muito feliz.

Eles precisavam de atenção! Ela sabiamente dividia seu tempo precioso para dedicar-se aos seus filhos. Desde que foi abandonada por seu esposo é somente para eles que ela se dedica diariamente. Ela os ama. Ela sabe que terá ainda muitos desafios, mas se sente lapidada para os enfrentar.

A caminhada terminou. Ela chegou, cumprimentou os filhos e foi direto para cozinha. Era a hora de preparar lanchinho dos seus filhos. Voltou para a rotina mais alegre. A essência da sua vida ali está.

Ao chegar, avistou a pia cheia de louças sujas. Panelas destampadas. Por incrível que pareça não sentiu desejo de brigar. Olhou para os filhos e brincou: acho que vou voltar para minha caminhada! Posso?