Máximos

Meu falecido pai tinha habilidades com a bola. Jogador veterano, foi e ainda hoje é, admirado na cidade pelo seu futebol. Sempre que menciono de quem sou filho para os mais vividos, eles fazem demonstrar sua deferência. Dele herdei os contornos das panturrilhas, os quais fazem somente vislumbrar as dele, tão mais fortes eram suas pernas. Talento com a bola, eu, nenhum. Talvez tenha sido travado meu desenvolvimento quando criança. Aquela famosa maldição: pai de sucesso, filho fracassado. Quem conhece casos assim? O filho, tudo que faz ou acredita ter de fazer, acaba sendo comparado aos feitos do pai. Cresce sem o banho de sol, pois cresce na sombra de um ídolo. Carrega o fardo injusto da expectativa, sente-se obrigado a fazer a corrida do bastão: o pai vem vindo, corre feito um felino e vai me passar o bastão! Não posso desapontá-lo! Mas é exatamente o que acontece. Aconteceu comigo, pelo menos, na questão do futebol.

Dito isso, entro no mistério sobre o qual quero falar. Futebol eu joguei poucas vezes na vida. Sem alcançar avanços, desisti do esporte e só voltei a jogar raramente – tão raro quanto uma vez em cinco anos – depois de já ter passado dos trinta. Acontece que, em momentos de inspiração inexplicável, eu cheguei a fazer jogadas... mais do que dignas, digamos. Existe o bordão “sorte de iniciante”. Será que tem um fundo de verdade? Pode ser um dito daquela conhecida sabedoria popular, imemorial, como a ciência dos índios sobre ervas e raízes. Essa sorte de iniciante pode também fazer entrever um laivo de um dom latente. Agora chegamos a outro dito popular: “tal pai, tal filho”, ou “filho de peixe peixinho é”. Outra vez a tal sabedoria popular. Continua sendo mistério pra mim.

Mas digo o que senti naqueles momentos: euforia, bem estar e confiança. Entretanto, o mistério está no fogo. Em cada um daqueles momentos houve a sensação de se ter uma fogueira no peito. Isso pode ser normal nas pessoas, espero, ou eu posso procurar um manicômio. O fogo arde o coração e o corpo responde completamente integrado, sem pensar, sem pesar possibilidades, por puro instinto, move braços e pernas e cada músculo faz seu trabalho ao mesmo tempo em que o cérebro brilha seus comandos na velocidade da luz. Nasce a jogada perfeita, o momento supremo, o movimento certo. Tudo mais raro ainda do que as vezes que joguei futebol depois dos trinta! Não adianta tentar outra vez, é insucesso o resultado da repetição do ato.

Essa fornalha não parece ter a ver com a prática. Atualmente sou praticante de squash, tenho uma disciplina e constância nesse esporte muito maiores do que jamais tive com o futebol. No entanto, ainda não senti o ardor jogando squash. Também não se restringe ao esporte, mas acredito que a ele seja mais adequado por seu caráter instantâneo: esse fogo é súbito e fugaz. Parece dizer sobre o corpo, movimento, ação. Já o senti em situações de serenidade, como quando estou escrevendo, mas nunca o capturei tempo suficiente para extrair dele seu suprassumo.

Houve uma situação muito bizarra, mas que, de tão bem cair a este texto, resolvi que não podia ficar de fora. Tudo começou com uma mania de ansioso. Como trabalho em escritório e tenho em minha frente computadores e papeis o dia inteiro, em certa ocasião comecei a jogar as canetas marca-texto na parede, parede esta que ficava atrás da mesa onde corrigia os desenhos de engenharia. O objetivo era que as canetas quicassem na parede e voltassem para mim. Um pequeno esporte através de um dia de trabalho. Eu as jogava um pouco para cima, elas viajavam alguns centímetros, batiam em ângulos variados e voltavam pra mim, trazidas pela gravidade e pela força do repicar.

Aconteceu num dia em que conversávamos animadamente eu e mais dois colegas no escritório. Eu sentado, os dois em pé. Como se possuído por uma entidade de alegria louca e sem motivo, senti o fogo. Não pensei em nada. Peguei meu marca-texto amarelo (tampado), levantei, virei-me para os colegas e lancei a caneta. Atravessou ela dois metros ou pouco menos, acertou a vidraça de uma estante em ângulo perfeitamente reto. Lembro-me de como o vidro se deformou com o impacto e devolveu a caneta, na mesma trajetória de ida. Lancei com a direita e peguei com a esquerda. Poderia tentar mais de mil vezes, não faria outra vez. Um dos colegas ficou me olhando com olhos arregalados de espanto e um sorriso assombrado no rosto. Parece um causo de fogueira, então vou voltar a quando disse “e lancei a caneta” para acrescentar: de olhos fechados! Está certo isso. Não pensei em nada, não era mais dono de mim, só havia o fogo no peito e fiz o arremesso de olhos fechados.

O que me levou a escrever sobre tudo isso foi a admiração de habilidades aprimoradas de certas pessoas. No esporte, exemplos são os super craques. Em atividades cotidianas, hoje em dia há muitos vídeos na internet mostrando as já famosas façanhas dos chineses em seus trabalhos. Virou meme: “malditos asiáticos, mal posso ver seus movimentos”. Nas artes, desde sempre temos os ilustres e eternos gênios pintores, compositores, escultores.

O fruto destas supremas habilidades pode ser chamado de obra-prima. Uma obra-prima é, por definição, uma maravilha. Causa espanto e admiração, invoca à contemplação aqueles que dela se apercebem. Chamam à alma a fogueira, são faíscas causadoras de incêndio e invadem o ser pelos sentidos, causam transformação e saem em forma de arrepios, gritos, expirações e lágrimas.

Uma obra-prima é o máximo de qualidade que se produziu até aquele momento. Mas eis aqui outro grande mistério. Existe um máximo absoluto? Não creio. Responder positivamente a essa questão seria consentir que ninguém mais, em tempo futuro algum após o máximo absoluto ter sido atingido, será capaz de fazer melhor. Nos esportes os recordes de hoje não poderiam ser batidos. Uma obra de arte não poderia ser superada por gênios do futuro. O asiático de hoje seria o melhor para sempre. Acho que isso não acontece no mundo real e me sinto feliz por causa disso!

Como seria chato saber que atingiram o máximo absoluto em alguma coisa! Saberíamos que, não importa o que possamos fazer, não nos seria permitido superar o original. A premência em ultrapassar limites, subjugar marcas ou simplesmente entrar para o hall das obras-primas é o combustível que impulsiona a humanidade. Não somente se trata de habilidades físicas, motoras ou criativas. Obras intelectuais também procuram suas obras-primas, tanto nas artes quanto nas ciências.

Nas ciências o conceito de máximo absoluto é mais palpável: explicar tudo. A comparação fica clara ao sabermos do caráter subjetivo das artes. Serem geniais: uma pintura, escultura, jogada de futebol, movimento de Taekwondo, ginástica olímpica, poesia... o que significa? A arte é para ser admirada de forma íntima por cada indivíduo e tem um valor distinto para cada um. Certo é que se avaliam técnicas e que existem critérios rígidos para as artes, mas a sua subjetividade não pode ser negada e não existe a técnica final e absoluta. Picasso é diferente de Van Gogh, assim como Cristiano Ronaldo é diferente de Messi. Mas todos são geniais e o debate sobre quem é o maior não encontra consenso - às vezes nem faz sentido. Voltando às ciências, posso acreditar que existe um máximo absoluto, mas não estamos nem perto de saber disso. Atualmente, existe o debate sobre ser o universo cognoscível ou não. Ou seja, pode até ser real a possibilidade de não sermos capazes, bloqueados pelas leis da própria existência, de saber tudo. O máximo absoluto, mesmo para as matemáticas, continua a fugir.

E é essa fuga que me deixa feliz, repito. Uma obra de arte está no caminho em direção ao máximo absoluto (como já temos intimidade com ele, vamos chama-lo carinhosamente de Máximo). Uma obra-prima senta-se no trono do Máximo, mas sabemos que interinamente. Logo logo alguém pode destrona-la, ou sentar-se a seu lado. E é essa possibilidade que nos move.

Todas as ciências e formas de arte estão apontadas para os seus Máximos. Esse sentido de ser faz produzir os frutos do conhecimento e da beleza. Um Máximo, se é que pode ser definido, é como um valor assintótico: nunca pode ser alcançado, pois está protegido pelas léguas do infinito. O máximo absoluto só existe como limite superior. Um limite superior, que não pode ser atingido porque não se pode atravessar o infinito, está no domínio dos sonhos. Neste domínio o ser humano adentra e navega somente pela imaginação.

No mundo real, usando a imaginação, invocamos conhecimento e criatividade para criar algo além do que existe. Algo que vá contribuir para cobrir as distâncias do infinito que leva aos almejados (quiméricos) Máximos. O sentido dessa busca varia entre a satisfação da vocação e do ego. Comum é o sentido ser composto por uma miscelânea de objetivos: prazer, beleza, caridade, conhecimento, reconhecimento, fama, legado, dinheiro. E assim nascem as obras-primas, aliando dom, talento, estudo, disciplina, perseverança, trabalho e esforço.

Nosso poder de criação se baseia em nossa imaginação perante os desafios. Não há mistério que estanque a perscrutação do humano nem que se torne hermético à sua sondagem. Somos enxeridos por natureza!

Uma coisa eu queria saber. Os grandes humanos – batedores de recordes, gênios imortalizados – sentem o ardor no peito? No meu caso, como não sou nenhum grande humano, penso ter experimentado estados de êxtase, com descarga de adrenalina, coisas assim. É curioso. Fogo semelhante já senti em ocasiões de elevada espiritualidade ou na prática de uma boa caridade – não se iludam, não sou um santo ou bom samaritano, mas tenho algumas experiências esparsas. Nessas situações, o fogo queima por mais tempo e não parece aumentar habilidade alguma, além de uma: o amor.