Foi o destino?

Além das caminhadas matinais que letificam corpo e mente, cultivo o hábito de andar em horas várias, nos afazeres diversos. Sabendo, por exemplo, que a distância de casa para a escola de natação é de cerca de 20 minutos andando, regulo a saída de casa ao horário que dá para encaixar nesse tempo.

E como não há ida sem volta, torno o retorno mais agradável. Sem o compromisso da hora da aula marcada, estendo o trajeto por uma nova vista, emoldurada pelo mar, e ainda aproveitando o tempo da maré baixa para uns breves e rejuvenescedores mergulhos.

Na vez recente, entre apreciar a paisagem litorânea natural e a que lhe é agregada pelas figuras humanas, vi um casal de idade próxima aos 45 anos, conduzindo o filho que, por comparação com meus netos maiores, deveria ter entre 17 e 18 anos. Era um garoto com altura próxima a um metro e setenta, pernas bem finas, sem muito controle das passadas, andando sempre nas pontas dos pés e com o andar meio desencontrado. À sua frente uma bola que ele fazia esforço para chutar pra frente, por vezes conseguindo, por outras, não, mas toda vez, alcançando ou não, mesmo com um chute meio fraco e sem direção, era animado pelos pais com os ditos “dessa vez foi quase, muito bem”, “parabéns, você conseguiu de novo”.

Foi inevitável o pensamento nos filhos e netos. Para todos eles essa atividade de chutar a bola teve o seu momento de comemoração nos primeiros meses de vida, logo passando a ser uma “atividade normal”, realizada pela maioria das crianças nesse estágio de desenvolvimento. Tão normal que acaba com reclamações dos pais sobre um chute mais forte que quebrou um vaso, ou o incômodo que está provocando no vizinho ao lado, pelo gol nas paredes. E tome punição! Uns, lamentando por não ter, outros, nem se dando conta do que têm.

Filosofemos: Como explicar que uma criança nasce bem, se desenvolve segundo os seus estágios etários de crescimento, com independência, e outra é gerada com uma série de limitações e dependências? As explicações são muitas, variando desde a do poeta, “foi para diferenciar que Deus criou a diferença”, passando pela tão necessária ciência, até o saber popular puxando o esclarecimento para outra zona não tão bem fundamentada assim.

Numa leitura tardia de Olhai os Lírios do Campo, de Érico Veríssimo, encontro uma explicação “mágica”, característica do senso comum. Logo no início da história o protagonista traz à lembrança a sua mãe, que sempre que acontecia à família alguma coisa fora do padrão, ela se apressava em atribuir o resultado ao destino. Para ela o acaso era um ser cruel, todo poderoso e implacável, o que acabou levando o filho a atribuir ao destino, a responsabilidade por todas as coisas que lhe eram desagradáveis.

Será por isso que se ouve tanto falar que filho é loteria? Sendo ou não, o fato mais importante é um só: filho é filho, para ser aceito do jeito que é, pois, segundo a canção, “todo mundo tem seu jeito singular... ser diferente é normal”. Assim, aproveite e ame o seu rebento da forma que ele é, pensando sempre que aquele comportamento irrequieto, que às vezes lhe irrita, é motivo de vibração de muitas mães quando os seus, à custa de muita dedicação e esforço, exibem as mais diminutas conquistas, tal qual a bola chutada por aquele rapaz na praia.

Fleal
Enviado por Fleal em 08/02/2022
Reeditado em 08/02/2022
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