Tentei uma crônica afável

Queria escrevinhar singelezas neste início de tarde. Contudo, as palavras ausentaram-se de mim. Ao meu redor, pessoas falam demasiadamente em prazos e processos, sobre a batida na avenida e a falta de chuvas, de Fulano que cada vez trabalha menos e Cicrana que, depois do divórcio, desandou a viajar. Apesar do falatório, faltam-me palavras dignas de ocupar esta folha em branco.

Os clipes largados na mesa dizem pouco acerca das semanas que estive de férias. Da janela, vejo nuvens acinzentarem o dia; mas acho que não choverá. Há anos vivemos assim: reclamando da seca, clamando a São Pedro que envie suas preciosas gotas para encher nossos reservatórios. Porém, nos meses em que as chuvas abundam, pouco ou nada é feito por nós e pelas autoridades para economizar a água. Aí quando o inverno chega, trazendo na mala a estiagem, recomeça o blábláblá de sempre. Ao meu lado, falam em acender velas na cruz da Júlia, fazer novenas, enfeitar a Santa Cruz… Afinal, “a fé não costuma faiá”. Contudo, homem de pouca fé que sou, prefiro ficar no meu cantinho, de butuca no gingado das nuvens.

O telefone toca. O estagiário atende: a linha fica muda, pela segunda vez. Ele ri (os jovens sempre riem); se fosse comigo, resmungaria e praguejaria o resto da tarde... Meu calendário marca: falta pouco para a primavera. Recordo agora, não sei por que, a última vez que estive em Mariana: na estação ferroviária, os ipês amarelíssimos pediam muitas fotos... Olho novamente o céu, saudoso de quando podia viajar. Nos fones, Adriana Calcanhoto me diz “não gosto do bom gosto, não gosto do bom senso, não gosto dos bons modos”. Olhando a página em branco, resmungo: Adriana, também ando desgostoso de tanta coisa...

Finjo que o falatório não me incomoda. Faltam cinquenta e um dias úteis para o ano acabar. Neste cálculo já deduzi as férias que ainda gozarei e os feriados e suas benditas emendas. Risquei-os todos com tinta vermelha: um alento para suportar as semanas vindouras... Retiro mais uma casadinha da gaveta, reviro a mente à cata de palavras para encher a imensidão branca da página. Ao lado da folhinha, a garrafa transpira, quase molha o celular. Ah como eu queria estar sentado na varanda relendo o Veríssimo, ou esparramado no sofá assistindo a velhas novelas. Reprise por reprise, sou mais o Vale a Pena Ver de Novo que esse falatório insano.

Queria escrevinhar singelezas neste início de tarde. Ou, pelo menos, uma crônica mais afável. Tentei, não consegui. Mas, como se diz, o importante é tentar.

*Publicada originalmente na Revista Conhece-te, dezembro de 2021

Raphael Cerqueira Silva
Enviado por Raphael Cerqueira Silva em 13/02/2022
Código do texto: T7451215
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