Rotina

Nem sempre foi desta forma, mas hoje posso dizer que sou uma pessoa amiga de mim. Uso a ideia de amigo de si mesmo para definir alguém que consegue tirar prazer e descanso em total isolamento. Este alguém está em estado de solitude – ao contrário de outro que, estando sozinho, também se sente sozinho, estado esse classificado como de solidão.

Ingenuidade seria eu ter utilizado a palavra “alguém” sem o apoio de outra palavra: “estado”. “Alguém” invoca a noção de pessoa, identidade pouco mutável no tempo. Entretanto, como seres humanos, neste contexto somos mais voláteis do que a palavra “pessoa” propõe. Então, estado de solitude ou de solidão: uma pessoa "está", e não "é".

Solitude está no domínio positivo de um espectro que diz respeito, entre outras coisas, a relações sociais. É amiga do bem estar e do autoconhecimento. Solidão está na parte negativa do espectro e tem parentesco próximo com o tédio.

Tédio é o caldo que escorreu da transformação do raro em comum, eu proponho. Estamos a falar de eventos cotidianos provenientes de hábitos e rotinas. Tendo em mãos uma tarefa nova, mata selvagem a ser desbravada, concentramos nela nossa energia. Energia é tempo, é raciocínio, é movimento, é esforço, é o que nos dispara na direção de um alvo. Essa concentração de energia jorra estímulos sobre o cérebro e, caso ainda não o saibam, o cérebro é um maníaco por estímulos. A tarefa inédita é um desafio que desencadeia esse processo e lança a pessoa num caminho de realização.

Repetindo-se vezes indefinidas, o novo se torna velho. O cérebro, máquina avançada, otimizado fica e passa a exigir cada vez menos energia para executar a repetida tarefa. Sobra poder cerebral, sobra energia. Frustra-se o cérebro pela depreciação do desafio já muitas vezes cumprido. A isso estou chamando de tédio.

Retomando o caminho inicial do raciocínio, podemos aplicar à solitude e à solidão os mesmos conceitos. Como dito, do decaimento do raro para o comum resulta o chorume do tédio. Aquele afeiçoado ao estado de solitude, seja por predisposição genética ou por hábitos, pode dele se cansar pelo excesso. Ocorrido isso, a solitude terá se tornado em solidão. E o tédio estará junto.

Já podemos refletir sobre rotinas. No ponto em que um estado com frequência se repete mora o perigo de sua deterioração num estado satisfatoriamente inferior, o que trará o tédio: o raro se tornou comum, o desafiante, desfiado. O rival fora vencido e não há mais graça a peleja contra ele.

O bordão justifica a sabedoria popular: “é preciso quebrar a rotina”. É preciso variedade de eventos, não obstante alguém ser mais dado a vegetais do que a carnes, sempre há um ponto crítico e um equilíbrio saudável. A rotina equilibrada minimiza nossos episódios entediantes, nutre nosso espírito com a diversidade de energia de que precisamos para evitar decaimentos. Rotina não é uma palavra negativa, como o senso comum apresenta. Inevitavelmente, vivemos em rotinas de diferentes escalas e frequências. A profusão de eventos é que faz pender a balança da rotina para o verde ou para o vermelho.

Estados de imenso prazer abundantes numa rotina também podem decair em tédio. Nosso cérebro sempre precisa de algo novo. Em algum momento, até mesmo um duradouro e ideal estado pode deixar de apresentar suas oferendas de satisfação ao seu deus. O tédio, então, funciona como um útil sinal de que algo não vai lá tão bem em nosso ser. É o cérebro pedindo alimento novo, o espírito desnutrindo-se.

Aqui quero evitar um possível mal entendimento. Estabilidade invoca a ideia de algo imutável no tempo, uma estrutura sólida. Rotina é uma repetição de eventos que também pode ser imutável e sólida, caso esse que não desejamos. Rotina poderia vir a ser confundida com estabilidade. Uma profissão ou um emprego podem ser estáveis. Um casamento pode ser estável. No entanto, estas ocupações e relacionamentos estáveis não necessariamente devem apresentar rotinas imutáveis. A estabilidade pode se manter e as rotinas se alterarem como o vento. Na verdade, é precisamente isso que muitos de nós deseja: condição estável de vida com rotinas variáveis.