Resposta aos Senhores da cidade

Perguntam-me por que escrevo tanto sobre minha meninice. Não me furto à resposta, senhores: tendo tão somente a solidão do quarto e o silêncio dos livros, entrego-me à tentação de pensar e escrever sobre os tempos de antanho. Sentado a observar as paredes nuas e uma teiazinha teimosa que une meu Pequeno Príncipe ao Barba Ensopada de Sangue, recordo a infância, materializo-a no papel. E o faço porque prefiro escancarar as janelas da memória e ouvir os ecos das remembranças a dar trela aos ruídos do presente. É preferível, penso, escrever sobre aquele tempinho bom a gastar palavras falando sobre o hoje. Palavras são valiosas como rubis; não devem, pois, ser desperdiçadas.

Por que falo do ontem, senhores? Porque, se descerro as cortinas, o que vejo é um prédio, horrendo como o Gigante que caiu do pé-de-feijão, a me impedir de assistir ao pôr-do-sol... e é tão triste não ver o sol se pôr! Pelos orifícios desse pavoroso Leviatã, vagam luzes baças e sem graça que revelam silhuetas de doutores, secretárias e outras personagens em constante vaivém laborativo. Da minha janela, vejo-os, penso: parecem formigas às vésperas do inverno.

Os senhores ainda querem saber por que escrevo sobre o ontem? Eu lhes digo, com toda a vênia que merecem. Porque não tenho mais o direito de ver os tons lilases e arroxeados a riscar o firmamento anunciando o anoitecer; porque tanto concreto e tanto ferro me impedem de assistir ao espetáculo das nuvens se trombando na serra; porque vossos prédios, senhores, me roubaram o direito de ver a chuva chegando mansa, expulsando os caminhantes da praça e das ruas, lavando o telhado da São João Batista. Porque, desde que construíram essa torre de Babel, só consigo ver a lua crescente quando já vai alta e meus olhos já pedem o aconchego dos braços de Morfeu. Mais uma razão, senhores? Eu lhes dou, afinal, não me custa: nas tardes de abril já não gozo mais o direito de deitar na cama e sentir o sol, pouco a pouco, roçar-me o corpo, começando pelos pés e deslizando até o rosto, como um afetuoso amante.

A Babel, é preciso dizer, não está só: em seu entorno, há prédios igualmente pavorosos que se assemelham a muralhas medievais. Há dias em que me sinto como um soldado, imprensado e esquecido numa casamata úmida, à véspera do derradeiro bombardeio. Luto para não sucumbir mas, como os senhores sabem, o poder do progresso é demasiado. Luto, contudo, como o último guerreiro que ambiciona invadir o castelo do rei; luto como o insano Quixote contra a implacável força de Frestón; luto como o poeta que, na calada da noite, forja o verso final. Lutando, recuso-me a olhar o hoje. Prefiro continuar a olhar pelo retrovisor, pois a memória, eu sei, sempre trará momentos áureos. De sem-gracice me bastam os prédios cinzentos do centro, as paredes cor-de-pastel da repartição, o obituário do Jornal Nacional, as palavras que me chegam da rua quando, à varanda, tento ler alguma literatura...

Senhores, eis, portanto, as razões porque escrevo tanto sobre a meninice e o ontem. Sei que estamos no verão, os dias são claros e fartos, e os senhores certamente devem achar enfadonhos meus textos e queixas. Mas, o outono vem chegando, senhores. “Em vista do que, ponhamo-nos melancólicos”, como escreveu Rubem Braga. E que nossa melancolia nos faça refletir.

Raphael Cerqueira Silva
Enviado por Raphael Cerqueira Silva em 19/02/2022
Código do texto: T7456120
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