Pedagogia e Sociedade

Em todos os países do Mundo, o Estado forma a população estudantil para o modelo de sociedade que pretende fazer perdurar. Se se pretende um mundo mais justo, a Pedagogia será uma. Se se pretende perpetuar as desigualdades sociais, a pedagogia será forçosamente outra. A tragédia a que assistimos actualmente na travessia desesperada do Mediterrâneo, fez-me recordar um episódio da minha infância que remonta à década de 1950, em plena Ditadura. Um episódio que ilustra bem a inter-relação entre o Ensino e a Sociedade.

O Ensino, em Portugal, durante o Estado Novo:

Durante o regime salazarista, após o Ensino Primário, obrigatório, que durava: 4 anos, para os rapazes e apenas 3 para as meninas, havia a opção entre o Ensino Liceal e o Ensino Técnico.

O Ensino Liceal destinava-se, grosso modo, às classes sociais favorecidas pela sorte. Em geral, era frequentado pelos filhos dos "quadros", e essas crianças traziam consigo um "back ground" cultural que lhes permitia compreender e assimilar as diferentes matérias. Claro, havia "bons" e "maus" alunos, alunos interessados e alunos desinteressados. Mas o nível social de que provinham era de mediano para cima. Compreendia três ciclos:

O 1º ciclo, os dois primeiros anos: fazia a transição do ensino Primário para o Secundário;

O 2º ciclo: os três anos seguintes: os programas preparavam os alunos para uma compreensão abrangente da Cultura Geral! Compreendiam a parte de Letras e a parte de Ciências; ao todo, seriam umas 9 disciplinas.

Estes cinco anos constituíam o "curso geral dos Liceus" - habilitavam para empregos no sector do Comércio, em escritórios dos organismos oficiais, e assim por diante.

Havia depois o 3º ciclo. Aqui, o ensino era mais especializado, pois habilitava à entrada nos diferentes cursos das Universidades.

Quanto ao Ensino Técnico, destinava-se ao "povo". Compreendia apenas um Ciclo Preparatório, de dois anos. Ensinavam-se as mesmas matérias, mas "por alto"... Isto é, os programas seriam semelhantes aos do Liceu... mas "simplificados"...

Em seguida, os alunos teriam que optar entre o Curso Comercial e o Curso Industrial; para as meninas, havia ainda a opção da Formação Feminina. Na opção industrial, havia diferentes vias de formação, contemplando formação em Serralharia, Carpintaria, Electricidade, etc... Para aqueles jovens que a partir destes dois tipos de formação específica, quisessem continuar a estudar, havia um ciclo: ou no Instituto Industrial, ou no Instituto Comercial. Mas estes dois Institutos, que eu saiba, só existiam em Lisboa. Só a partir de cada um destes Institutos os jovens poderiam ingressar nas Universidades.

Como foi que os meus Pais me matricularam na Escola Técnica

Em primeiro lugar, era a minha Mãe quem punha e dispunha. O meu Pai alheava-se das decisões. Os meus Pais eram ambos Professores Primários.

Segundo a minha Mãe, eu era uma aluna pouco promissora, que não iria corresponder ao investimento de ser encaminhada para o estudo liceal. Por isso, matricularam-me na Escola Técnica.

Durante o primeiro ano, fui uma aluna normal, sem me salientar em nenhuma disciplina em especial. No entanto, para surpresa da família, a partir do 2º ano, comecei a ter muito boas notas em Português... E a partir daí, nos anos seguintes, passei a ser "boa aluna" nas disciplinas de Letras - Português, Francês, História...

Ensino e “status quo”

E agora, após esta introdução, posso recordar um episódio que ilustra o que expus acima:

No antigo Ensino Técnico, a disciplina de Português (no 1º e 2º anos do Ciclo Preparatório) chamava-se “Língua e História Pátria”. Tínhamos dois livros de estudo – a par do livro de “Leituras”, muito atraente, tínhamos o “Portugal Gigante”, uma interessante selecta de textos de grandes historiadores sobre a História de Portugal, mas inapropriada para crianças de 11 anos estudarem por ela…

Naquela manhã, íamos ter teste de Português:

Os testes constavam de interpretação de um breve texto; e depois tinham questões de Gramática, e de História de Portugal. Entre nós, garotas, manifestava-se a ansiedade de sempre antes de entrar na sala de aula, e sempre as mesmas perguntas: Estudaste?… Aquilo não se entende nada…

Mas, surpresa bendita, a professora faltou. As meninas que nós éramos, congratulámo-nos. Em média, o grosso da turma éramos garotas de 11 ou 12 anos, mas havia miúdas repetentes de quinze, dezasseis anos, pouco ou nada interessadas em batalhas e Descobrimentos…

No inverno, quando chovia, e não se podia ir saltar à corda nos pátios, juntávamo-nos num dos vestiários da Sala das Alunas, um rectângulo aconchegado, onde havia dois bancos ao longo das paredes mais longas. As minhas colegas, sobretudo as mais velhas, faziam roda à minha volta… “Fátima, a batalha de Ourique!” – “Fátima, quem passou o Cabo Bojador?” E todas agradeciam que eu lhes explicasse indefinidamente aquelas áridas matérias.

O teste que não tivemos nessa aula, tivemo-lo na aula seguinte. E todas tivemos a classificação de “BOM”! As minhas colegas, sobretudo aquelas que não passavam do “Medíocre”, exultavam… Mas a professora zangou-se. Forte e feio! Pensou que as alunas mais ‘fracas’ tivessem estudado com a minha ajuda, e considerou isso muito incorrecto: “Isto não volta a repetir-se!” E anulou os resultados daquele teste: era preciso fazer outro - não podíamos ser todas iguais! Foi um desânimo geral. As minhas colegas voltaram a ter os fracos resultados que tanto as entristeciam. E ficaram extremamente revoltadas porque a minha colaboração não tinha sido bem acolhida… E mais ninguém lhes “traduzia” para uma linguagem acessível, aquela matéria que não tinha sido escrita a pensar nelas…

Que quer dizer este episódio?

A "curva de Gauss" - o gráfico "em forma de sino" - diz que o gráfico das classificações dos alunos deve fazer um arco: notas muito más do lado esquerdo: por exemplo, uns 2% dos estudantes; notas muito boas do lado direito, apenas uns 2% dos estudantes; e as notas medianas para o grosso da turma. Assim, no lado direito da curva, apenas as raras notas de Bom e provavelmente apenas uma ou duas de Muito Bom... Quer dizer, na Pedagogia tradicional, a Escola, a turma, deve ser um exemplo, um "retrato" da Sociedade, onde será normal haver “pobres” e “ricos”, e onde o ideal será o grosso da sociedade numa mediania estável, sem ambições e sem revoltas. E onde se suporta a Caridade (que ajuda a manter o status quo) mas não a Solidariedade (que contribui para a resolução dos problemas).

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Informação complementar:

Sobre a "curva de Gauss":

http://intra.tambau.com/microsiga_p12/help-online/portuguese/plsa981_curva_de_gauss.htm

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Esta crónica foi publicada no jornal O AUTARCA:

Crónica Nº 16, O AUTARCA, Primeiro jornal electrónico editado na cidade da Beira, em Moçambique; Ano XVI, Nº 2899 – Quarta-feira, 10 de Junho de 2015

Subsequentemente, foi reproduzida no meu blogue "Por ondas do Mar de Vigo", no dia 16 de junho de 2015;

Mas foi agora actualizada, em 22 de Fevereiro de 2022

Myriam

Fevereiro de 2022

Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 22/02/2022
Reeditado em 22/02/2022
Código do texto: T7458041
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