Cheguei na sala por volta das 15 horas. Na porta uma mensagem escrita em pincel azul: Volto já

Olhando para aquele papel amassado, já borrado (como quem tivesse sido vítima de banho de suor ou café derramado), uma folha de caderno com pautas e entre elas, aquelas letras garrafais que traziam a resposta para minha pergunta: onde estará a atendente responsável pela operação do Rotativo Digital? Pelas características do documento, que poderia ser usado como prova de presunção de ausência, percebi que, naquelas condições, tratava-se de uma conduta frequente. Mas era só uma constatação.

O celular não dava nenhum sinal de vida, bateria arriada, 2%, embora jamais esqueça o carregador. A lei de Murphy não me eximiria jamais de tamanha aventura impulsionadamente estressante. Minha mãe diria que esquecer a sombrinha dezenas de vezes, em dias de chuva, não me ajudou em nada, vez pois, não aprendi com o erro.

Mas vamos lá: O que são 15 minutos? Tempo mais que suficiente para a aquisição dos famosos créditos que impedirão uma multa de trânsito. Nunca recebi multas. Habilitada estava aos 18 anos. Sentia-me invicta e vez ou outra acabava usando esse  mérito com um destaque: apaixonada por carros. E, logo, dirigir por horas era uma terapia.

Um minuto e já estava criando versões mirabolantes para o bilhete azul. A moça deve ter ido ao banheiro. Mas como?  Trabalhar o dia inteiro numa sala que não tem banheiro?

Minutos depois: ela deve ter ido ao supermercado, comprar um lanche e a fila estava enorme.

Mais alguns minutos: O elevador está estragado ou em manutenção. Será?  E ela subiu de escadas. Doze andares de escada é uma viagem ao mundo do oxigênio das árvores altas.

Dez minutos depois: Deve ter acontecido alguma coisa, Só pode... A mãe da menina deve ter passado mal.

Mas por que estou pensando que é menina? E se for menino? Se ele tiver aproveitado o intervalo e ido ao barbeiro, cortar as medeixas? Se ele foi pagar a conta na lotérica e a fila está imensa? Se ele foi ao mictório? Quem sabe fumar...

Mas e se for, na verdade um guarda municipal que foi atender a um chamado de algum outro que atende na rua, numa ocorrência que envolvia mais de uma pessoa? Se foi um acidente?

A distância entre a pseudo multa e eu era de 3 minutos, afinal, os 15 de tolerância estavam na contagem regressiva.

Resolvi descer até a recepção e perguntar ao porteiro se o funcionário teria trabalhado naquele dia. Se tinha deixado algum recado, ou coisa parecida. Mas ele disse que não tinha conhecimento e pediu desculpas. Desculpei-o e não sei até agora o motivo. Parecia que tinha obrigação de saber, coitado. Num prédio de 15 andares com 10 salas cada.

Voltei para a porta e vi os 15 minutos se dissipando no tempo. Agora a cliente educada dava lugar a malvada e intolerante motorista eloquente que poderia receber uma multa.

- Se ela foi fazer um lanche, deve ter caído dentro da garrafa de coca-cola e o produto fez o mesmo efeito que num vaso sanitário.

Se ela foi na farmácia porque estava com cólica menstrual, deve ter tido uma hemorragia no caminho e a ambulância a levou pro PA.

Se ela foi na lotérica fazer um jogo, deve ter ganhado na hora e desistiu do trabalho.

Se eu for multada, vou levar uma fotografia do recado com o horário, tirada no celular. Que celular doída? Sem  bateria.  E testemunhas como o porteiro? Será que ele aceitaria de um volto já, de alguém que foi buscar maracujá e azedou meu dia?

Foram exatos 68 minutos que separaram a minha angústia: aconteceu algo ou essa garota é mansa?

De repente uma mensagem via aplicativo pelo relógio: Sentimos muito, mas você não tem mais créditos para ativação automática e a partir desse minuto está sujeita as sanções previstas no CTB.

Eu viajei por galáxias inteiras em dois segundos. Busquei a menina com a força da mente, atrelada ao ódio que me consumia: Eu não vou pagar essa multa. Não vou pagar essa multa de jeito nenhum (repetia insistentemente).

Até que a menina abre a porta da sala, sorridente, como se nada tivesse acontecido. Aquele olhar de punhal que saiu dos meus olhos, tornou-a imóvel: 

- Posso ajudá-la, em alguma coisa?

- Como assim pode me ajudar. Estou aqui há duas horas e seis minutos, esperando o seu volto já. Acabei de receber uma notificação no relógio de multa de trânsito por falta de créditos. Nunca fui multada na vida e você me pergunta se pode me ajudar?

- Desculpa, moça. É que esqueci de trocar o recado da porta. Como o escritório fica na segunda sala, tem um bilhete embaixo, olha aqui,  com ""Entre sem bater". Jamais saberia de sua presença. Sinto muito. Infelizmente o nosso sistema fecha as 17 horas e não será possível ajudá-la. Terá que voltar amanhã.

- Como assim, voltar amanhã. Entre sem bater? No meu caso hoje é bem improvável entrar sem bater em alguém... Brincadeirinha! E a multa?

Já foi emitida pelos guardas e, infelizmente, terá que entrar com recurso na JARI. Mas já vou logo avisando, nos 8 anos de Rotativo na cidade, somente duas foram suspensas e invalidadas: de uma cadeirante que não podia subir escadas e o elevador estava estragado e ela era cega e não tinha acesso a celulares. E uma segunda que foi uma idosa que teve um mal súbito. O restante sempre indeferem.

- Mas, moça...

- Vou ter que ir porque o ônibus sai do terminal em dois minutos, desculpe. A notificação chega em 15 dias, até lá, precisa aguardar. Fica com Deus.

- E você vai para o raio que a parta... (preferi deixar no pensamento). Que dia! Aonde mesmo que parei o carro? Quanto será a multa? Quantos pontos perderei na carteira?

- Você vai descer?

- Não, moça. ( Ela entrou no elevador)

Vou ficar aqui de molho, curtindo meu papel de trouxa, bem amarrada, em nome de Jesus. 

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 12/03/2022
Reeditado em 13/03/2022
Código do texto: T7471220
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.