Se eu morresse amanhã, as nuvens altocumulus e cirrus fariam aquele espetáculo maravilhoso de fim da tarde, conforme previsto pelos especialistas em meteorologia, por causa da frente fria que chega, tão comum no outono.

 

O movimento da terra não seria alterado, logo, a volta seria dada em aproximadamente 24 horas, sendo contadas em segundos, minutos e horas.

 

A bolsa de valores permaneceria em operação e o dólar, em alta, impediria que os investidores fizessem operações de risco para não perderem seus investimentos, como ocorre diariamente.

 

O padeiro faria o sonho recheado com doce de leite e o bolo de aipim com as medidas exatas de suas receita e, no fim da tarde, não sobrará nada, pois nunca sobra.

 

Talvez alguns façam uma oração pedindo clemência à Deus pelos meus pecados. Confesso que não são poucos. Falo pelos cotovelos. Reclamo de barriga cheia. Assassinei alguns com meu olhar perfurocortante. E não observei direito os que estavam ao meu lado na tricheira, quando entrei nessa batalha da vida. Talvez seja uma falha.

 

Se eu morresse amanhã, os boletos não fariam curva e nem chegariam no novo endereço, cuja gaveta cresceu. Embora aos que ficam, restam-lhes a obrigação de cumprir com os compromissos em meu nome.

 

Talvez alguém escreva uma homenagem, como se nas memórias póstumas pudesse ler os sentimentos não ditos ou não vividos, nessa esfera terrestre. Será que o fazem por crer que as emoções lidas por outros pessoas chegam através do universo aos que fizeram a grande viagem?

 

Alguns chorariam. Por qualquer que seja o sentimento. Tristeza, dor, contentamento. Apesar de que, quando morremos, as pessoas nos dão uma espécie de medalha da bondade ou troféu póstumo. Todo morto tem defeitos, mas na hora da partida sempre aparece o que ele fez de bom. "Era um carrasco com o filho, mas ajudava a organização que atendia crianças em vulnerabilidade social. Foi um bom homem."

 

Se eu morresse amanhã o aposentado teria caixa prioritário e não atendimento prioritário, como prescreve a lei, sem nenhuma alteração, mesmo amando os idosos, lei alguma seria capaz de devolvê-los a dignidade roubada.

 

O dono da funerária venderia mais uma urna. Isso se a morte não fosse presumida.

 

No metrô uma poltrona ficaria vazia... Até alguém se sentar.

 

O vinho que guardei para uma ocasião especial seria degustado sem nenhum remorso. Para celebrar um novo amor, decerto.

 

Seria cremada e as cinzas jogadas ao vento. Isso se as condições financeiras permitissem. Quero ser pó em liberdade! Voando a favor do vento, ao menos uma vez!

 

Um padre celebraria uma missa. E depois de 7 dias, outra. Um mês, outra...

 

A Cotinha, coitada, ficaria se perguntando quem vai pagar o perfume que pediu pra entregar lá em casa.

 

O povo do necrotério ficaria incomodado quando recebesse a instrução de não enfeitar com flores, nem aceitar coroas, afinal sou alérgica. Pelo menos era.

 

O enterro seria cortejo. Como assim não vão reclamar do peso do caixão? Onde já se viu isso? Carreata? Jamais.

 

O Scarpin verde limão ficaria para a próxima encarnação. Se houvesse... Mas e se houver e for homem? Drag Queen. Ponto.

 

Se eu morresse amanhã, ainda que minha mãe chorasse e a dor a acompanhasse para o resto dos dias, a terra não pararia.

 

E não teria oportunidade de conhecer Portugal...

 

 

 

 

 

 

 

 

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 23/03/2022
Reeditado em 28/03/2022
Código do texto: T7479153
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