Ontem no trem. Trabalhadoras brasileiras!

Ontem no trem

Mudanças...

Ano de 2022...Novas paisagens, mas a viagem de trem continua.

A bem da verdade, com menos frequência e em outro ramal...

Impressionante como a paisagem muda... Às pessoas, às interações... Até o camelô é diferente...Rsrs

Pois bem, embarco em um trem inrespiravel! Não sei nem se existe esta palavra ou eu acabei de inventar ... Mas não tem jeito, no horário que pego não tem trem vazio.

Entrei e fiquei em pé em frente a um grupo de 3 mulheres sentadas.Fiquei lá com uma bolsa imensa e pesada. Ganhava da bolsa do Batman! Mas infelizmente nenhuma alma bondosa e prestativa pediu para segura-la.

Nem pensar colocar no bagageiro! Eu simplesmente consigo esquecer a bolsa! Já tinha esquecido semana passada. Agora me diga, como uma criatura consegue esquecer tamanho peso em um trem...? Eu esqueci. Desci linda e saltitante. Derepente me lembrei da bolsa, só deu tempo de retornar e o trem zarpou... Saí percorrendo desesperada os vagões...kkkk... Só rindo! Achei. Um susto danado.

Pois bem, sigo com os ouvidos e olhos atentos aos acontecimentos...

As mulheres falam da lentidão e parada do trem. Uma delas disse que levou quase três horas para chegar em casa no dia anterior. A outra comenta e pergunta se ela tinha filhos. Depois completa dizendo que estava nesta batida por muito tempo, saia pro trabalho, chegava tarde , dormia ... Não tinha tempo pra nada. Em tom velado acrescenta: " Até que um dia descobrir que meu filho estava quase ficando paralítico e eu não observei isto...Não dava tempo...muito cansaço...não prestei atenção. Hoje , depois de quase ter perdido meu filho, aprendi a lição, não morro e nem vivo pra trabalhar...mesmo com sacrifício arranjei tempo pra ele. Ainda mais agora que perdi meus pais na pandemia."

A mulher bonita, morena, gordinha e com aparência atrevida finalizou: "não vou morrer de trabalhar, faço o que posso. Aprendi a lição."

Uma outra mulher negra, magra, de uniforme de trabalho, mais nova, sorridente e com cabelos presos e vermelhos, dizia: "Chego só pra dormir ... Saio de casa três e meia da manhã . Trabalho em um condomínio. Pego três conduções. Mas estou indo, emprego está difícil. Um dia desse quase fui mandada embora pois não tinha dinheiro para ir trabalhar. Esqueci meu armário aberto na hora do almoço e trocaram o meu crachá, só descobri quando passei no metrô. Achei que fosse falha da empresa, só que não, descobri que o cartão tinha sido trocado. Colocaram outro cartão cancelado e levaram o meu. Não fui trabalhar, comuniquei pois tinha sido furtada dentro da empresa. Não fizeram nada e exigiram minha presença. Só que não tinha dinheiro. Só não me demitiram porque o condomínio que a empresa presta serviço interviu a meu favor. Triste. Mas parece que a gente não vale nada. Descobriram a pessoa que trocou o cartão, foi mandado embora por justa causa. Se sujou por R$5.80. Usou o cartão uma vez no metrô. Triste. Passo esse sufoco para ir e vir do trabalho. Até que eu estudei, imagina se não estudasse?"

A morena de cabelos negros , sentado na lateral, olhar arregalado, entrou na conversa e disse que trabalhava no financeiro de uma administradora de condomínio, apesar de trabalhar no ar condicionado, seu trabalho era extremamente estressante e que não aguentava mais. Morava longe e quando era solicitado hora extra ela dizia que só se pagasse pousada pra dormir. Era Impossível devido a distância.

Conversa vai, conversa vem...saiu papo de roubo entre colegas de trabalho. A morena , gordinha de aparência atrevida exclamou: "Gente, não é brinquedo não! Roubam até carne da marmita. Roubaram a minha. Chorei de raiva!!!!

Neste momento não contive a risada. Não pude disfarçar que não estava prestando atenção.As meninas apavoradas disseram que agora iriam amarrar as marmitas delas com corda!

E assim chegou a minha estação, desci carregando um peso danado, ninguém pegou minha bolsa, mas em compensação ouvi várias histórias...

Caminhei até meu trabalho, refletindo sobre a vivência de cada uma daquelas mulheres, como muitas no Brasil, obrigada a fazer dupla, tripla jornada. Tendo que se equilibrar em cumprir vários papéis na sociedade...

Vejo o retrato do trabalhador vivendo pra trabalhar. Sai no escuro e volta no escuro devido a distância casa/trabalho. Muitas vezes 6 dias por semana em uma situação quase aviltante.

Penso sobre o comportamento de alguns em furtar o próprio colega...Seria fruto da necessidade? Falta de valores ou oportunidades? Ou seria um profundo descaso com o outro colega? Agir furtando um cartão de passagem ou um bife da marmita do próprio colega, companheiro de luta, de sofrimento...

Seria estas atitudes uma forma de descontar todo descaso, toda revolta, todo maltrato sofrido nos que estão mais próximo dele?

Se arriscando a perder o emprego por tão pouco...Ou muito ...Sei lá!

Me lembrou o sermão do Bom ladrão (1665) de Padre Antônio Vieira...

Deixa pra lá...Este assunto daria outra crônica.

Só sei que não justifica mas nos leva a refletir e não simplesmente tirar conclusão de apenas um recorte da realidade.

Ainda falando de nossas trabalhadoras, como tantas outras espalhadas pelo nosso Brasil, sua vida cotidiana e marcada, dentre outros fatores, pela falta de tempo para desempenhar outras atividades sem que sejam as profissionais.

E dando muitas graças a Deus por isto, dado a atual conjuntura.

Mas um dia de labuta!

A trabalhadora que vos escreve, também indo para segunda jornada de hoje, às 17:45 da tarde.

Graças a Deus!

Beijo no coração!

" É preciso ser um realista para descobrir a realidade. É preciso ser um romântico para cria-la".

Fernando Pessoa.

Glória Alice
Enviado por Glória Alice em 24/03/2022
Código do texto: T7480004
Classificação de conteúdo: seguro