LAPSO DE MEMÓRIA

Passei no vestibular, ainda adolescente, fresco do colegial feito numa escola no centro da cidade, naqueles três longos e árduos anos. Entretanto, para mim foi uma imensa surpresa esse feito prodigioso. Talvez eu fosse de fato o Clark Kent como me chamava a professorinha de Física em face dos meus óculos que à época poderiam, à ela, fazer referência ao famoso herói dos quadrinhos e das telas.

O que é sabido é que não lembro do processo de labuta entre lápis, caderno e borracha, virando noite numa escrivaninha, com os olhos esbugalhados, trincados e de um vermelho saltitando pelo globo ocular. As vagas lembranças das madrugadas eram apenas esmagando mosquitos na parede do quarto, numa palmada cheia de fúria. Quem atrapalhava o sono zoando ao pé do ouvido tomava cacetada e certamente era destruído.

Durante à tardinha, em meio às lembranças perdidas na cachola, também não me recordo nem ligeiramente de folhear livros, resolver uma equação complicada ou mesmo um experimento de química no fogão da cozinha, no aconchego da casa. Lembro apenas de me equipar com um par de joelheiras, um rodo resistente, um pano encardido e um balde cheio de água, onde estava diluído um forte desinfetante. Na única tarefa do trabalho do lar.

Pela noite a concentração era demasiadamente difícil em face do convívio familiar que exigia dar um pouco de atenção a todos – em meio ao diálogo salutar ou no fogo cruzado do famoso conflito entre irmãos. Ainda assim, quando o tempo ainda permitia abrir a mochila, o desânimo se impregnava em meio à complexidade de resolução dos exercícios da escola. Mais da metade permanecia em branco, longe das ousadias do grafite.

Então, fica esse grande lapso no córtex cerebral com um desfecho irresoluto de algo que deveria ser óbvio. Como passei no vestibular se não estudei? Parafraseando o grande filósofo grego Sócrates, só lembro que nada lembro.