A Girafa


          Fui até a estante de livros que fica em meu quarto, tirar o primeiro livro da fila para ler e lá estava ela, com seu rabinho empinado e o porte elegante: uma girafinha linda, no rodapé da lombada. Mal terminando o pensamento: "O que estará fazendo aqui uma girafa, em um livro passado no Irã?" virei o livro de frente e decifrei o mistério: A Girafa é o nome da Editora. Agora o corpo da girafinha saía da letra R, só se vendo o seu pescoço. Na contra-capa lá está ela de novo, e sob a figurinha a encantadora a frase: "a cabeça nas nuvens/ os pés no chão " - perfeito pensei, esta sou eu. Como palavra puxa palavra e idéia puxa idéia lembrei-me de uma brincadeira recente da qual participei - pediram-me que escolhesse um animal que eu gostaria de ser caso fosse um animal diferente do animal que eu sou e eu não consegui, de cara, escolher. Pensei na coruja pelo simples fato de eu ter estudado Filosofia, no peixe,signo do meu nascimento, passei por uma infindável lista de outros bichos que tive ou não, mas que de certa forma amei, por ter representado alguma coisa em minha vida e acabei no cavalo apenas porque o acho magnifíco, um príncipe em sua beleza majestosa. Mas sem nenhuma convicção, escolhi por escolher, artificialmente,sentimentos desconectados. E agora, sem mais nem menos, eu o encontro, o animalzinho que pode perfeitamene simbolizar o que sou: a girafa, com suas quatro patas bem firmes fincadas no chão mas a cabeça cada vez mais em direção às nuvens, tentando atravessá-las para alcançar as estrelas. Não sei muito sobre a girafa. Sei que posso procurar na net, mas não quero. O que me importa é apenas a imagem, pois é com a imagem que me identifico.Eu a vejo caminhando tranquila e calada, até com certa languidez, atravessando as ruas de uma cidade sem se preocupar com o assombro que a envolve, olhando para o alto em busca da transcendência, mas com os pés firmes no chão. Não, ela não quer voar. Quer ficar aqui mesmo, na imanência da vida. Mas sabe que há algo além, mais em cima, que ela também pretende alcançar.Quer o melhor dos dois mundos, o do aqui e agora e o do alto, muito além, quase inatingível.E eu, como boa mineira, quero ser como ela: ver além das montanhas sem sair de casa.

          Sempre tive vontade de ter um ex - libris para marcar meus livros. Uma marca que representasse algo de mim, me identificasse e começo a pensar que a encontrei agora.Esta marca pode vir a ser uma girafinha. Pena que eu não possa usar a slogan da Editora,nem o desenho, mas vou tentar encontrar alguma coisa semelhante. Que me inspire tanto quanto esse desenho com o rabinho requebroso.Uma girafinha amarela com pintas marrons, como o brinquedo que uma das crianças de minha família teve um dia.Sobre fundo branco.Um quadrilátero marrom contornando. Só falta a frase, para explicar o inexplicável. O que me faz lembrar uma cena de minha infância. Algo que eu nunca consegui decifrar e que sempre tive como uma assombração, coisa de outro mundo, povoando meus pesadelos. Uma tarde, antes do por do sol, mas quase, eu passeava na linha do trem com uma amiga. Passear na linha do trem sempre foi uma brincadeira rotineira. Tentar andar nos trilhos sem colocar os pés nos dormentes ou nas pedras que os separavam. Uma de cada lado, com uma equilibrista no trapézío. A linha do trem em minha terra abria uma bifurcação formando duas rotas. Como um V. No meio do V um campo de futebol.Caminhávamos, depois do banho tomado, antes do recolhimento para os deveres da escola, pela  linha da direita e lá pelo meio do campo, vimos na outra linha um animal. Talvez um cavalo. Só que a medida que o animal andava, seu pescoço ia crescendo, crescendo,crescendo,crescendo.. e nós, paralisadas, vimos aquilo desaparecer na escuridão enquanto  dávamos meia volta em direção a braços protetores e sonoras risadas. É claro que ninguém acreditou em nós... nem nós mesmos a medida  em que crescíamos. Mas..agora, quem sabe, os olhos do meu assombro não teriam visto, muito antes que eu fosse, o que sou agora?