SOBRE A SUTIL ARTE DE FICAR EM PÉ

Naquela aula, a professora pediu que pegássemos o caderno de ditado, um caderninho engraçado, de capa azul, um pouco maior que as nossas brochuras, que eu não sabia para que servia. A palavra “ditado” ainda não tinha as dimensões de hoje, era apenas mais um pequeno mistério para um garoto de sete anos.

E assim ela começou a disparar palavras, com a gravidade que a tarefa exigia, sua voz era de um tom decidido e eletrizante. Eu acompanhava, inerte e com os olhos baixos, tamanha voracidade de nossa professora, como um bichinho que se finge de morto para sobreviver ao predador.

De fato, eu não sabia o que fazer, não entendia onde colocar aquelas palavras na folha. Como ordenar aquelas palavras que não faziam nenhum sentido? O que fazer com cada uma em meu universo infantil? Será que eu precisaria “pegar” todas elas, ou bastava as que eu achasse mais bonitas? Eram algumas das perguntas que eu me fazia...

Quando a sessão de tortura terminou eu olhei para o que havia feito, vi algumas palavras jogadas aqui e lá, sem nenhuma lógica espacial, bateu-me um certo pânico, uma vontade de entrar naquele caderno e ficar quietinho, como uma palavra no canto da folha.

A professora exibiu um ar de dever cumprido, para ela o mundo havia se tornado todo azul depois daquela tarefa e as coisas passavam a ter sentido. O ditado era sua obra-prima, com ele conseguiria checar quem sabia de verdade e quem estava ali só para tomar seu tempo. E eu sabia que eu estava na segunda categoria.

Essa experiência, ainda nos primeiros dias de aula, marcou-me profundamente. De vez em quando ainda sonho com ela, mas também tenho sonhos bons, como o muro do “Tuchê”, em que brincávamos no recreio. A brincadeira era simples, mas inesquecível, subíamos no muro, que era bem baixinho, e o objetivo era derrubar os colegas ao lado e dizer a palavra “Tuchê”. O muro do “tuchê” era o ponto de encontro preferido dos meninos.

Lembro também, com a mesma alegria do “Tuchê”, do primeiro livro que ganhei. Foi minha tia Marli quem deu. Teve um gosto muito especial, porque eu pude escolher o título. Fomos a uma banca de jornal, não pense o leitor que é dessas bancas fajutas, não! Aquela banca de jornal era uma biblioteca de Alexandria para um menino da minha idade. Era um lugar de encantamento e magia.

Minha tia disse para escolhermos um livro, eu e minhas duas primas. E isso foi o mesmo que dizer que o mundo era nosso. Eu escolhi um lindo livro de capa dura chamado “O menino e o bumbo”. Esse livro foi meu brinquedo preferido durante muito tempo. Lia, relia, lia de trás para frente, lia e inventava outras histórias, depois tentava ler só as páginas pares, ou as ímpares. De repente, fingia que não conhecia a história, para ler mais uma vez com aquele primeiro entusiasmo.

Era só um menino que passava com seu bumbo. Um pequeno garoto, que onde passava levava consigo a música e alguns animais o seguiam. Sempre achei os animais mais inteligentes que os humanos. Os animais da história eram muito espertos, conheciam o poder da música e me ensinaram que vale a pena seguir sonhos e que um pequeno garoto tocando bumbo não pode ser ignorado.

Cheguei a levar o livro para a escola algumas vezes, mas tinha medo de perdê-lo, de emprestar e ele não voltar mais, como o que aconteceu mais tarde, com muitos livros que tive. Levava-o só para ter prazer de colocá-lo na maletinha azul quadriculada, que mamãe comprou para eu ir à escola.

De alguma forma, essas primeiras experiências com a leitura e a escrita sempre me acompanharam. Ajudaram-me a entender como devo ser como humano e como professor. Pequenas coisas podem significar muito para um garoto, por isso gosto de valorizá-las. A vida, às vezes, nos derruba, fui aprendendo muitas coisas. Mas quando temos um bom livro e o apetite suficiente para ler, as coisas são diferentes. Ficamos em pé! E aí, somos nós que dizemos: Tuchê!