Avó profissional

Faço parte de um clube de leitura, Livros da Frederica, e vez por outra acontece de, na análise do livro, contarmos com a presença dos autores. Assim foi com Francisco Antonio Cavalcanti - Um prelúdio para Ilse -, com Marília Arnaud - O pássaro secreto -, e, mais recente, com Maria Valéria Rezende – Quarenta dias.

Ajuda muito, para que isso aconteça, ter entre os integrantes do clube pessoas com fácil acesso a essas estrelas literárias. Assim percebemos o quanto estamos cercados de excelentes escritores, premiados, prontos para uma conversa olho no olho com o leitor.

O bom desses encontros, com hora só pra começar, é que além de falar sobre o tema do livro e o seu processo de criação, enveredamos pela história pessoal do autor, como se fosse outro romance sendo lido.

Foi assim também com Valéria Rezende, vencedora de três prêmios Jabuti, que acredita que todos estamos destinados a escrever um livro. História é o que não nos falta. Talvez por isso alguém tenha dito que a nossa vida é um livro aberto. A imagem não poderia ser melhor: as páginas expostas estão aí pra quem quiser ver (e ler). Com um risco: o entendimento do que é mostrado, por quem lê, nem sempre é o mesmo que se quer passar com essa exposição. Tem também as partes que já lemos, que é de conhecimento só nosso, mas que revelamos apenas o que nos convém. E ainda as partes do livro que desconhecemos, por não termos lido, -a vida que ainda não vivemos-, que é segredo até para nós e que um dia se revela, de maneira nunca imaginada. Quer um “por exemplo”? O tapa de Will Smith. Como veem, Valéria tem razão. Material é o que não falta.

Falando dos Quarenta dias, com cuidado para não colocar gosto ruim em quem não leu (lembra que era assim que se falava, antes do “spoiler” tomar conta?), numa das muitas tramas do livro (os ganchos) ela joga a história de uma filha que quer tornar a mãe, idosa, uma avó profissional. Afinal já está aposentada e tem mais é que tomar conta dos netos para que a filha possa cuidar da sua carreira profissional, não é? A história lhe é familiar?

O interessante da conversa (que não está no livro) é que ela revelou ser a única pessoa da família que poderia tocar nesse tema. Não tem prole (é freira), e não poderia ouvir o espanto de uma filha “Mamãe, é isso mesmo que você pensa? Renega o seu neto antes mesmo de ter nascido?”.

Essa não é, portanto, a história de Valéria. Ela apenas dá voz a muitas mães que embarcam nessa de avós profissionais, mesmo a contragosto, numa época da vida em que aspiram outros interesses. Alguém, usando o palavreado tão comum nos dias de hoje, poderia dizer que ela não teria o “lugar de fala”, pelo fato de não ser mãe, para escrever sobre isso. Até argumentaria: ela não sabe a delícia que é ser avó, por isso fala assim.

Mas veja o poder das letras. Após a leitura do livro, uma mãe entrou em contato com ela, para agradecer, dizendo que a trama retratava exatamente o dilema que estava enfrentando, e sem saber como decidir. E que o livro a ajudou na decisão: “quem pariu os teus, que os balance”. E assim, mais uma vez, a literatura entremeia a vida com a arte.

Fleal
Enviado por Fleal em 05/04/2022
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