Apegos e desapegos

Desapegar-se não é fácil. E, mesmo sendo uma perda temporária, esteja certo, vai mexer. A crônica de Lucas Arroxelas, Um exílio pessoal, me fez pensar sobre os meus degredos, tanto de discos, como de livros. O drama dele foi ter que escolher os exemplares que o acompanhariam em seu momentâneo exilio, enquanto estivesse cursando o mestrado. O que ele não contava era com a falta que os não escolhidos fariam em suas conversas literárias, muitas delas dando motes e subsídios às suas crônicas.

Sou daqueles que aprenderam a gostar de música ouvindo os “presentes sonoros” nas rádios AM. Tão logo pude, comecei a comprar meus 78 rotações, evoluindo para os LP’s, depois substituídos pelos Cd’s. A mudança de casa para apartamento, reduzindo os espaços, criou o dilema sobre o que fazer dos Lp’s, que lá não cabiam, com suas artísticas capas (algumas de Elifas Andreato) e seus maravilhosos encartes.

Pensei e pensei e a solução encontrei: doar para um amigo (Betâmio) colecionador. E assim o fiz. Até por saber que, se um dia sentisse saudades de um deles, saberia bem onde procurá-los e achá-los.

Mas eu não contava com a “astúcia” do streaming e assim, os mais de dois mil cd’s que sucederam os “bolachões”, perderam para o Spotify o encanto de serem ouvidos, além da incerteza de sua destinação. Isso porque a magia que os Lp’s proporcionavam ao colecionador, com a arte ali embutida, e não só a musical, não é a mesma do restritivo Cd. O que fazer com eles? Até hoje busco a resposta.

E aí vêm os livros. Depois de cinquenta anos de exercício do magistério, trabalhando na formação de professores, vem o vírus e apressa a real aposentadoria. Eis que volta o dilema (aquele mesmo dos discos) sobre o que fazer com os livros de Educação, que me acompanharam por uma vida inteira, e que aqui, escondidos, não teriam a mesma serventia?

Novamente pensei e pensei e decidi doar a uma biblioteca. Escolhi uma cidade interiorana, Ceará Mirim, onde passei como professor, por imaginar a plena utilização que seria feita pelos estudantes daquela comunidade.

A hora do empacotamento não foi fácil. Pego a caixa e, antes de ali colocá-los, vou repassando um a um. Vejo a capa, folheio, leio as anotações, relembro a data da compra, a livraria da aquisição e vou montando a história de cada exemplar. É isso, um livro não é apenas um livro, mas toda a história que o acompanha. E vem a dúvida. Dou esse, ou guardo como lembrança do que ele representa? E assim foi com vários. De repente percebo que a pilha dos que não serão doados equivale à dos que ganharão nova casa. Fecho os olhos e empacoto tudo, fiando-me no mesmo consolo de quando doei os Lp’s. Sei onde eles estão e, qualquer precisão, ou mesmo saudade, saberei onde encontrá-los. Espero um bom uso de todos eles na Biblioteca Francisca Alves Rodrigues, professora, que mesmo não mais estando entre nós, continuará acolhendo, no espaço literário em sua homenagem, os que anseiam por conhecimento.

Fleal
Enviado por Fleal em 12/04/2022
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