A viagem: uma crônica sobre a vida e a morte
Fatalmente chegará o dia em que o nosso trem fará sua parada para o desembarque. Ouviremos uma voz que dirá “Senhores passageiros, queiram por favor desembarcar”.
Querendo ou não, desembarcaremos e veremos o trem fechar as portas e seguir viagem. Alguns seguiram no trem, outros desembarcaram conosco e outros já fizeram o seu desembarque.
Então nos vemos com as malas nas mãos, parados na plataforma da estação. Nessa hora, um funcionário da empresa ferroviária nos fala:
- Quando embarcastes, nada trouxestes. É justo que agora nada leveis. Abandonem vossas malas. Sois livres e não mais precisais desses fardos.
A contragosto, deixamos nossas malas. Porém, alguns companheiros insistem em levá-las e, para eles, a nova caminhada é mais árdua, penosa...
Afora os companheiros de viagem que partiram antes e os que ainda seguem, pego-me a pensar naqueles que viajaram conosco no mesmo vagão e por vezes ao nosso lado, no mesmo banco. Desses, houve os que mudaram de banco e os que mudaram de vagão... Mas é que cada um tem as suas necessidades de viagem. Podemos seguir juntos por tempo e nos ajudar porque assim a viagem exige. No entanto, o destino é diferente.
Há também aqueles que tornam a nossa viagem mais difícil, insalubre, como a querer nos fazer desistir dela. É o grande desafio. Todavia, deixar que isso aconteça, é decisão nossa. Houve também aqueles a quem estendemos a mão e recebemos (ou não) a gratidão. Assim como houve a quem recusamos o apoio.
Houve quem reconhecesse a nossa existência e houve os que nem se deram conta de que existimos. Houve também aqueles a quem a nossa existência não passou de utilidade. Acabada esta, o resultado já sabemos. Mas... o que isso importa? Será que durante a viagem também não agimos assim?
O fim é igual ao começo da viagem: embarcamos sós e sós desembarcamos. Importa o que fazemos no interstício entre um e outro. E cada um é que sabe de seus passos. Cada um sabe o que faz e o que não faz. Não nos cabe o papel de juiz.
Se há diferença entre o começo e o fim? Claro que há. Iniciamos a viagem livres de pesos e arquivos. À medida que viajamos, vamos acumulando pesos, arquivando tudo o que vivenciamos. O fim da viagem é o momento de formatação e reinicialização do sistema.
Após o desembarque, mais cedo ou mais tarde, notamos que não há ponto final na Grande Viagem chamada Vida. Há, sim, uma estação em que desembarcamos para uma baldeação rumo a outro destino, outra viagem, outro recomeço. No entanto, nem sempre os companheiros de viagem serão outros.
Enquanto divagava sobre tudo isso, observei a Vida e a Morte, lado a lado, se divertindo com tudo. Precisamos compreendê-las melhor; afinal, elas são irmãs gêmeas e inseparáveis. E como todas as irmãs (irmãos também), às vezes elas se abraçam e sorriem e em outras se engalfinham numa briga em que ambas saem feridas.
Elas estão ao nosso lado o tempo todo. São nossas eternas companheiras de viagem. Na verdade, elas são as condutoras da nossa viagem. Não adianta, portanto, fugir de uma e querer apenas a outra. Elas conhecem e cumprem à risca o seu papel.
Agora preciso continuar viajando...
(Cícero – 16-04-22)