Graças à Tiradentes, o grande mártir da Inconfidência Mineira (de inconfidente nada tinha) que ganhou data especial no calendário Oficial do Brasil, ao fim de semana, somou-se um ar prolongado. E feriadinho, claro, convoca pra uma "vibe" atlética: Que tal uma caminhada?

 

Na Praça do Cristo, os 500 metros em contorno, criam um cenário bastante atraente para as práticas esportivas. Não fosse é, claro, os quiosques com músicas altas (funk é música?), os parquinhos infláveis bem no meio do caminho e as kombis e carros de doces. Além do moço do algodão doce, o cocô dos cachorros das "dondocas mal educadas' e o povo todo da cidade que teve a mesma ideia criativa: passeio ao ar livre.

 

Os 120 mil habitantes da cidade não caberiam na praça, nem mesmo em proporções mínimas, como era o caso. Congestionamento social em tempos de pandemia seria um crime? Talvez fosse, mas encontrei a D. Déia. E até esqueci do isolamento. apesar das orelhas jamais permitirem esquecer das máscaras. Como doem.

 

D. Déia elegante, vestia um conjunto preto com recortes azuis de uma marca famosa. Nas mãos, uma garrafinha de vidro com um escrito que não me vem à mente, e uma viseira com a estampa Adidas. Cabelos escovados, cílios postiços, unhas de gel coloridas e maquiagem em tons rosados, numa pele incrivelemnte branca. A mulher era bonita. Ao passo que eu, coitada, lá estava com o cabelo esmiuçado, preso por uma buchinha rosa, uma calça azul e uma blusa lilás, nada combinadinho. Protetor solar em alta, porque sou dessas, e nem um batonzinho para contar a história: a máscara não permitia. Até que fui abordada por ela, a bela que tinha ma língua uma fera:

 

- Acelera, moça. Tem que correr atrás do prejuízo.

 

De que prejuízo falava ela? Era o saldo negativo da Páscoa? Ou o "caviar" do Tiradentes? Continuou:

 

- Mulher tem que ser reta. Ser curvas. Pra poupar o patriarcado machista de sedução generalizada.

 

Eu quis rir, mas não podia. Aliás, não vinha ao caso. Poupar o patriacardo machista parecia discurso religioso. Mas a moça não me dava trégua:

 

- Rugas, minha filha, só as do neocórtex. Quanto mais rugas cerebrais, mais capacidade de processamento. Na face, vale um botox e uns ácidos hialurônicos. Só fica feio quen não tem dinheiro ou marido rico.

 

Pronto. Estava mesmo sendo massacrada pela caminhante preconceituosa de fala fluída? Retruquei:

 

- Ainda bem que estudo. Quem sabe não sobra a inteligência para mim? Vai que Deus tem seus preferidos? Ao menos, me parece...

 

- Vira essa boca pra lá... (O que fiz. Sem saber que se tratava de um ditado). Sou Edenilda Bianchi Sperratti, prazer. Mas pode me chamr de Déia. Não perco uma oportunidade de me tornar minha melhor versão. Já me perdi em dietas mirabolantes. Já fez a do vinagre? É só pão e ele. Vômitos e fraqueza. Mas perde peso, que é o que importa. Quem dera verdadeira fosse aquela ideia de banhar-se com um sabonete emagrecedor, como em 1930, nos Estados Unidos. A única dieta que cairia bem feito uma luva, nesta data, seria da Bela Adormecida: enquanto durmo, emagreço. Mas já faço minha parte, passo longe de letreiros digitais com cores vermelhas e amarelas. Você sabe que estimula a fome, não sabe?

 

Queria dar uma resposta conveniente, mas o Mequi veio à mente. Achava engraçado aquele trabalho todo que a moça parecia ter ao tentar me provar que era preciso correr atrás do peso, digo, correr do peso.

 

Mas a Déia, queria continuar com o seu monólogo:

 

- Fica velhaca, menina! Autoestima só combina quando você cabe num 38. Depois disso, ladeira abaixo...

 

Passei a dar passos cada vez mais curtos. Que caminhada mais estranha essa minha. Tenho mesmo uma imã pra atrair provocações de todas as espécies. Parecia que a D. Déia tinha sido recrutada lá no céu, pura misericórdia divina, para que pudesse usar o meu 70X7 da bíblia. Tem gente que veio ao mundo apenas para nos ajudar nessa travessia ou para fazer um teste de resistência.

 

- Ou você pensa que a bumbum "duro", dura pra sempre? Entendeu o trocadilho?

 

Senti-me uma colegial em plena aula de D. Laura, a megera professora de Português, que dizia que a pobreza da linguagem era enriquecida pela grandeza do trocadilho. Tão pobre que se valia de si para ser outrem. Ela era uma gramática aberta soltando regras feito um avião com mísseis de guerra. Fui alvo diversas vezes. Morri de vergonha. Mas morte triste foi a dela, tão cedo, de infarto, numa competição de "soletrando". O golpe foi certeiro. Soletraram elucubrações com dois esses. Minutos depois, ela sentada à mesa, desfaleceu. Ninguém aceditou naquela cena. Mas era verdade. Mas o "bum(bum)" duro que me levou até o ensino fundamental era o assunto, e não podia terminar assim.

 

- A senhora é engraçada D. Déia. Quanto senso de humor. Apesar das brincadeiras, há muita verdade no que diz. - Falei abrindo um sorriso.

 

Ela continuou sua caminhada. Intervindo vez ou outra num "bolinho" sempre com algumas provocações que mais pareciam um serviço prestado pelo dono do garfo, vestido de vermelho e com perfurações chinfrudas na cabeça. 

 

Mas, enfim, sobre ela, apesar da presução exacerbada e da fala solta, sem critério seletivo, pesava um rótulo incapaz de se dissipar no tempo: uma linda mulher. Estava acima do peso, um pouco, talvez. Estava com rugas na face, bastante. Mas ao contrário de mim, que lhe parecia uma mera aprendiz no caminho, que já havia percorrido, ela já havia sentido o peso da cobrança, pois nela, as marcas eram mais visíveis. Sobre nós pesa a bagagem de envelhecer como se cometéssemos um crime.

 

Quanto a mim restou o fardo de vê-la tão vulnerável, atirando facas. Sobre ela, as cicatrizes. Há quem diga que D. Déia é inconveniente, exaltada, sem noção. Há os que nela veem uma mulher que carrega o peso do tempo e quer dividir, a seu modo, a dor de carregar essa bagagem.

 

E era só uma caminhadinha de leve pra ser fitness...

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 23/04/2022
Reeditado em 24/04/2022
Código do texto: T7501423
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