“ME LEVA PARA CASA, FIO!”

“Façam outra injeção de adrenalina no paciente e recomecem as manobras de ressuscitação cardíaca!”, ordenou a doutora Mariana na UTI de um hospital de BH, onde ela dá plantão!

“Pelo amor de Deus, doutora!! Essa já é a 23ª adrenalina que a gente faz no sr. Francisco! A gente já não tem mais nem forças nos braços para fazer massagens cardíacas!”, disse Jô, uma das cinco profissionais que tinham sido convocadas para “ressuscitar” um paciente de 84 anos, que às seis horas da manhã dera entrada no hospital com um quadro de parada cardíaca.

“Continuem!! Façam o que eu mando!”, disse a médica.

Jô olhou para o monitor de batimentos cardíacos... a linha horizontal não oscilava nem um pouquinho, indicando que o paciente já desencarnara há mais de uma hora e que devia até estar rindo assistindo àquele pessoal todo se revezando, “montado” em cima do peito dele, querendo que ele voltasse ao corpo. Olhou para o desfibrilador com defeito, olhou para seus braços doloridos... Fazer o quê? "Manda quem pode e obedece quem tem dívidas!"

Jô colocou uma mão sobre a outra e, com a base da mesma e com o braço estendido, recomeçou a compressão na linha entre os mamilos do sr. Francisco. Comprimiu com força, sabendo que o peito precisava afundar entre 5 e 6 cm e que a velocidade da compressão deveria ser de 100 a 120 batimentos por minuto. A cada 30 compressões ela fazia respiração boca a boca e parava extenuada, sendo sucedida por outra colega.

Existiam algumas razões para a insistência da Dra. Mariana: ela odiava que óbitos acontecessem em seus plantões, pois detestava ter de preencher D.O. (Declaração de Óbito). Além disso, às sete horas da manhã o plantão dela se expiraria e, então, o problema passaria a ser do seu sucessor, o Dr. Marcelo. Ele que se virasse!

Na verdade, preencher uma D.O, é algo tão sério que o Ministério da Saúde instituiu um Manual de Instruções para Preenchimento de Declarações de Óbito. Esse manual prevê tudo sobre morte de pacientes e contém nove blocos de variáveis (Bloco I – Cartório; Bloco II – Identificação; Bloco III – Residência; Bloco IV – Ocorrência; Bloco V - Óbito fetal ou menor de um ano; Bloco VI - Condições e causas do óbito; Bloco VII – Médico; Bloco VIII - Causas externas; e Bloco IX - Localidade sem Médico.).

Enquanto isso, do lado de fora, esperavam ansiosos, uma doninha de uns 80 anos, esposa daquele que a equipe de enfermagem estava encarregada de ressuscitar, acompanhada do filho único do casal, um senhor de aproximadamente 65 anos.

“Façam outra injeção de adrenalina no paciente e recomecem as manobras de ressuscitação cardíaca!”, ordenou, de novo, a doutora Mariana.

“Ah, não, Dra. Mariana, tenha dó! Nós estamos literalmente montadas sobre o peito deste senhor há uma hora e quarenta minutos. Quem sou eu para falar alguma coisa para senhora, mas vou falar: enquanto a doutora quer que nós ressuscitemos esse senhor, fazendo a 24ª injeção de adrenalina nele, lá fora tem um monte de pacientes com Covid-19 precisando desta medicação, também”, disse a enfermeira Jô.

“Enquanto o Dr. Marcelo não chegar para me suceder, eu não posso sair. Então, além da adrenalina, recomecem as manobras de ressuscitação, também!”, disse a Dra. Mariana.

Maldita Dra. Mariana, maldito desfibrilador com defeito, malditas dores nos braços cansados, maldito sr. Francisco que não queria ressuscitar, maldito Dr. Marcelo que não chegava!!... Pensava a enfermeira Jô.

Beirando as oito horas da manhã chegou o Dr. Marcelo com os cabelos molhadinhos, a carinha feliz, demonstrando que “tremera os olhinhos” com alguém, há poucas horas. Ao vê-lo a Dra. Mariana suspirou aliviada, nada perguntou e, simplesmente, “vazou”, pois já estava atrasada para pegar outro plantão não sei onde.

O médico recém-chegado, se limitou a dizer: “Pode levar o homem para a pedra (necrotério), que eu vou preencher a D.O. dele”.

Hora de chamar a esposa do sr. Francisco e seu filho. Coube à enfermeira Jô a tarefa de dar a triste notícia: “Então, minha senhora, nós fizemos tudo o que podíamos pelo seu esposo, fizemos 24 injeções de adrenalina nele e mais 24 manobras de ressuscitação, mas Deus precisava dele e o levou!”

Pensa que a doninha chorou? Qual o quê! Olhou para o filho e disse: “Até que enfim essa agonia acabou!! Tô cheia de dor nas pernas!! Me leva pra casa, “fio”!”

Até hoje a enfermeira Jô se pergunta o que o sr. Francisco deve ter feito na vida para merecer 24 injeções de adrenalina após ter “partido” e receber um comentário tão “significativo” por parte de sua mulher.

NORMA ASTRÉA
Enviado por NORMA ASTRÉA em 25/04/2022
Reeditado em 28/04/2022
Código do texto: T7502887
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