A agulha e a linha, e eu?

A agulha, a linha, e eu?

Quando chega a madrugada e o sono escasseia o pensamento costuma voar a adejar de flor e flor nos campos da vida.

Hoje meu beija flores pairou em uma bela bem-me-quer, cujas pétalas brancas representam a inocência e a juventude, que há muito tempo eu não visitava.

Entre flores veio-me a mente o apólogo A agulha e a Linha, de Machado de Assis, publicado em 1896, dois anos antes da abolição oficial da escravatura e tres antes da proclamação da Republica, experimentos que ainda hoje claudicam presunçosos por entre os casarões da jovem nação brasileira. (entendo por experimentos os dois atos históricos, porque,

Primeiro: a Lei nº 3.353, de 13.05.1888, eternizada como Lei Aurea, no Art. 1º declarou “extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil”, deixou largados os escravos sem eira nem beira, costume que se perpetuou até os dias atuais, como constata o historiador Flavio dos Santos Gomes:

A sociedade brasileira, mais do que permanecer desigual em termos econômicos, sociais e fundamentalmente raciais a partir de 1888, reproduz e aumenta tais desigualdades, marcando homens e mulheres etnicamente. in PINSKY, Jaime. Carla Bassanezi Pinski, (orgs). História da cidadania. 3ª ed. São Paulo, Contexto, 2005.p. 462.

Segundo: a Republica, que no dizer de Aristides Lobo “o povo assistiu àquilo bestializado” segue claudicando pela historia na tentativa de arraigar-se na consciência dos cidadãos e cidadãs, que “bestializados” permanecem espectadores do espetáculo, onde são incluídos como meros figurantes para legitimar o que os donos do poder decidem.

Quando dei por mim estava comparando o quase sonho com a vida na “vila” em que vivo, onde pessoas se desafiam presunçosas por ver quem é mais importante.

“A agulha disse a um novelo de linha

– Por que você está com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?

– Deixe-me, senhora, respondeu aborrecida a linha;

– Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável! Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça, redarguiu a agulha com deboche.

– Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros. Retorquiu a linha

– Mas você é orgulhosa. Respondeu a agulha.

– Decerto que sou. Retrucou a linha

E agulha - Mas por quê?

A linha irritada – É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?

– Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu? Grita a agulha ofendida.

A linha grita também: – Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados

A agulha vira os beiços e dispara: – Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando…

Contra ataca a linha: – Também os batedores vão adiante do imperador.

– Você é imperador? Disparou a agulha.

– Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto… Responde sobranceira a linha

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa.

Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser.

Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana2 – para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

– Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima…

A linha não respondia nada; ia andando.

Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas.

A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano.

Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto dia acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando.

A linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:

– Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá!

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

– Anda! Aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Segui o dia matutando: qual dos personagens me representa:

A agulha presunçosa, que fura o tecido, abre caminho para a linha, é manipulada pela habilidosa costureira, “unidinha a ela”, mas logo volta pro estojo pra não se perder, ou porque sem ela não há costura, ou porque pode espetar alguém;

A linha orgulhosa porque “prendo, ligo, ajunto...” embora a “baronesa” nem se lembre que sem mim a pompa que ostenta seria apenas um amontoado de pedaços de tecido em que sequer a beleza da estampa, alta padronagem e a habilidade da costureira seriam percebidos

(cenário ideal para materializar o conto de Hans Christian Andersen (1805/1875) O Rei Está Nu.)

O alfinete egoísta que não abre caminho para ninguém. Onde lhe espetam, fica;

Ou a costureira que é mantida pelo pessoal da casa enquanto precisarem de seus finos préstimos?

arturo cortez
Enviado por arturo cortez em 25/04/2022
Código do texto: T7502922
Classificação de conteúdo: seguro