Ponte

É preciso certamente estar com a cabeça muito confusa pra pensar em algo conciso. A vida é um braço sem pé nem cabeça. A gestação mal parida. Então praque pensar. Praque pensar devagar, ou pra que pensar com essa velocidade tão esquisita se a estrada é um espaço de terra. Pra que insegurança. Estou olhando pra mim. Aponto, reflito. Quero me matar de um tiro. Desde quando eu quero me matar? Desde que eu existo.

Os funcionários da prefeitura tiram a mãos a sujeira do rio. É tanta sujeira que já faz um mês que tão limpando. Eu volto pra visita e na hora que um puxa da boca do canal um pano encardido que eu não consigo nem por vias muito imaginativas ou extremamente sensatas deduzir como chegou alí porque não me ocorre nenhuma intenção que poderia ser específica de se jogar um lençol como aquele no rio ou nenhum acidente em que tal lençol poderia ter se envolvido pelas vias dos acidentes de riscos cotianos, penso francamente em me atirar da ponte da qual observo com minha roupa limpa e meus cotovelos relaxados no guarda corpo e morrer.

Quando estou na parada sinto uma voz murmurando no meu pé do ouvido e não é o símbolo de alguma preocupação com as culpas, com os medos ou com as dores. É uma voz de execução simples, como quem implanta um carimbo: você não quer viver.

Busco silencia-la e prejudico o trânsito fazendo dois carros desviarem pra não acertarem na minha bicicleta desembestada. Mas é desembestada porque o espaço dela não sendo besta é um tiquinho no canto entre o canteiro e o carro. A rua não foi feita pra mim agora. A rua é minha inimiga. A rua era um pedaço de terra. A rua antes nem era pedaço. Mas passaram asfalto e de repente eu andar por aqui é um perigo maior do mundo. E tenho que manter meus pensamentos na velocidade ordinária, nem acima nem abaixo.

Tento encontrar a linha que faz a média entre o rio, a parada e a bicicleta.

Ir com o rio é quase certo. Fortaleza era uma cidade inundada e eu descobri isso com vinte anos. Não sei quantos anos tem o rio. Sei que o matamos, apesar de ainda dar pra ver a água correr e a prefeitura estar fazendo essa limpeza de mais de mês, que é investimento de coisa viva. Investimento no que ainda rotaciona, porque se não fosse este o caso, nada estaria sendo feito com muito prazer.

Mas o rio está morto, apesar de passar. Vou ficar na ponte. Vou ficar de cócoras. Vou olhar através do gradil. Subirem o lençol pra ir pra caçamba. Ainda não faz o menor sentido. Ele rebola o pano p funcionário de cima, que agarra e no mesmo movimento joga pro caminhão fazendo uma saraivada de gotas d'agua colorir uma coroa de arco-íris ao seu redor.

Nia Ferreira
Enviado por Nia Ferreira em 04/05/2022
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