O tal livro

O texto vinha encimado por uma pergunta: que livro é esse? Os saberes e sabores da língua portuguesa permitem para essa interrogação, a partir do tom de quem fala, pelo menos dois entendimentos. Um deles é um misto de pergunta e admiração, traduzindo o enlevo pela obra, a reação de boca aberta, o queixo caído de espanto, provocados pela leitura; a outra é a interrogação pela interrogação, de alguém que, curioso, quer saber a qual livro se refere a questão.

A primeira forma, a do encantamento, embute o tema retratado na publicação, a maneira como ele é desenvolvido, o estilo literário característico de quem a escreve e outras nuances que tanto podem agradar como desagradar leitores vários. A segunda ressalta o questionamento em busca de uma resposta.

As duas versões surgiram em decorrência da leitura e dos comentários num Clube de livros sobre um mesmo romance, originando coluna aqui no Recanto. Com um detalhe, o “tal” livro não era citado. Havia brilho de um lado, pela beleza do que se lia, e por outro desapontamento por não estar sintonizado na mesma direção dos outros leitores.

Algumas pessoas diante desse desencontro de opiniões, ficaram com a curiosidade atiçada e me devolveram a pergunta “mas que livro é esse mesmo?”. Desfazendo o mistério: trata-se de "A palavra que resta", do escritor cearense Stênio Gardel.

Lá ele trata de temas que normalmente estão no lugar de silêncio das famílias, o lugar de “cala”. Assuntos que parecem existir apenas na parentela do outro, não na nossa. Escondem-se pessoas com doenças mentais, as especiais, a homossexualidade, o analfabetismo (isso mesmo, ainda somos 11 milhões no Brasil) e tantos outros temas. Stênio avança em dois deles, o analfabetismo e a homossexualidade.

A trama se desenrola em torno de uma carta escrita por um letrado (Cícero) para um analfabeto (Raimundo). A possibilidade de saber o conteúdo da missiva a partir da leitura por outra pessoa, existia. Mas ele se recusava a isso. Guardou consigo essa peça por décadas e, já idoso, foi estimulado a aprender a ler. Assim ele viu a oportunidade de desvendar para si o segredo que a tal carta encerrava, quais as palavras que ali restavam. E esse é o enigma que ele carrega, e não divide com ninguém, até os setenta anos.

Lembrei de um alfabetizador de adultos em conversa com os seus alunos sobre os motivos de, na idade adulta, terem decidido aprender a ler e escrever. As respostas vão desde os desejos mais banais (para os alfabetizados, claro) até a da senhora que queria desvendar as letras e suas combinações para “ter segredos”. Isso porque as cartas que recebia do filho distante tinham a intimidade devassada pelos decifradores, tirando-lhe assim os segredos. E é o que Raimundo, n’A palavra que resta, preserva.

As pistas soltas no livro conduzem a um conteúdo retratando uma história de amor. Mas o que o seu conhecimento, tantos anos depois de escrita, mudará na vida de Raimundo? Confirmará a regra de ser apenas ridícula, como costumam ser as cartas de amor? Isso só a leitura dirá. A da carta, por ele, a do livro, por você. Longe de mim ser um estraga prazeres. Só uma coisa posso garantir: será uma aventura encantadora.

Fleal
Enviado por Fleal em 10/05/2022
Reeditado em 10/05/2022
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