Sartre, o filósofo que morreu nos arreios

 

Outro grande que seguiu MacBeth e morreu firme nos arreios foi o filósofo Jean Paul Sartre. É o que se conclui ao ler “Cerimônia do adeus” de Simone de Beauvoir, relatando os últimos 10 anos do seu companheiro. E o fez baseado em diário de atenta observadora a desabar em prantos, vez por outra, face a identidade entre objeto de pesquisa e de amor.

 

O livro resgata a crônica do intelectual público engajado, mas também as alegrias e tiranias da intimidade. Entre as primeiras, as viagens de curtas férias em recantos da Itália e Grécia, as afabilidades, as levezas poéticas, as harmonias construídas sob o signo da liberdade. Entre as segundas, o dilacerante peso da doença que se instalou cedo no corpo do filósofo, para ficar.

 

Fumante diário de dois maços de fortes cigarros e apreciador de boas doses de Whisky, Sartre era hipertenso, aos 53 anos já sofrera ataque cardíaco quase fatal.

 

Ciente do histórico e dos hábitos do companheiro, Simone iniciou o diário com pressentimentos sombrios. É preciso viver bem, ter momentos felizes, considerava, mas um zumbido pairava no ar, “o peso da ameaça, a vida colocada entre parênteses”.

 

De fato, a agenda médica de Sartre ganhou mais páginas no diário do que cabia na intuição da escritora. Além da pressão que chegava a 25, Sartre sofria com abcessos contínuos nos dentes, diabetes, incontinência urinária. Mas o que realmente dilacerava a saúde e prostrava o pensador do existencialismo eram os problemas circulatórios, inclusive em parte do cérebro.

 

Simone cita os momentos angustiantes de perda de memória, boca torta, delírios e dias seguidos de inanição. Pelas descrições têm-se a impressão de fim, de morte iminente ou prostração irrecuperável. A própria Simone, ao acordá-lo a cada manhã, primeiro checava a respiração, tal o estado do paciente. Ela era como um anjo, um anjo-castor a cuidar do paciente rebelde e desligado, a colocar água na garrafa de Whisky para diluir o álcool, lhe ministrar os remédios, jogar damas como recomendação terapêutica e ler para ele.

 

O que impressiona no diário é a capacidade de Sartre em aceitar o sofrimento e o destino. Tal qual o resignado Cândido de Voltaire, ele sempre achava que estava tudo bem, “é assim e nada posso fazer, então não tenho motivo para desolar-me”. Mesmo quando a pior das fatalidades caiu sobre ele - a semi-cegueira - que o impossibilitava de ler e escrever, expressou resignação: “vai tudo bem, você lê para mim, trabalha-se, vejo o suficiente”.

 

A leitura do livro mostra também as surpreendentes recuperações do intelectual. Nas páginas seguintes às crises e via crucis em consultórios médicos e hospitais, eis que nos deparamos com um Sartre cheio de vitalidade, cumprindo esgotantes agendas em todo mundo, escrevendo, participando de manifestações na rua, dando entrevistas…e ainda bebendo, fumando… até tombar de novo e de novo se levantar.

 

Uma força o impulsionava ao futuro a fazer sempre novas coisas. Reduzido ao presente, se sentia inválido, morto, “não tenho o sentimento de velhice”. E a morte? “jamais penso nela”. Em seu livro “A velhice”, Simone de Beauvoir tipifica como ideal na velhice um homem permanecer sendo um homem, participante na política emancipatória. O exemplo de Sartre.

 

No ano derradeiro de 1980, aos 75, mal caminhava, mas ainda proferiu em Atenas a célebre palestra “O que é a filosofia”, revelando fortaleza e estado lúcido e ativo de espírito.

 

Simone percebia aflita que por trás das intermitências vitais do marido, a degradação do corpo seguia a passos largos. Certa manhã o encontrou sentado na cama, as mãos sobre a cabeça, sofrera edema pulmonar, o início do fim, no hospital uma sequência de diagnósticos a culminar em falência dos rins.

 

Era o que Simone temia, mas esperava. “O drama de seus últimos anos é consequência de toda a sua vida”, reconheceu, as escolhas têm consequências que se acumulam no tempo e associou à Sartre, a frase de Rilke: “Cada um carrega a sua morte em si, como a fruta o seu caroço”.

 

Agonizante no leito do hospital, Jean Paul, acalmou os aflitos médicos “escrevi, vivi, não há o que lamentar”. Para Simone, ele manifestava preocupação com o custo do funeral. Não tinha dinheiro, apenas dívidas com o editor. Não aceitou em 1964 o prêmio Nobel que o deixaria rico, doava todo o dinheiro que arrecadava com os royalties dos livros. Sobrava  quase nada para as despesas pessoais, não poucas vezes recorreu ao anjo-castor.

 

No final do livro Beauvoir filosofou com a frase recorrente de Sartre “vai tudo bem”. Admirava a serenidade de Sartre que em certa altura comungou com os estóicos. Que serenidade? questionou ela, tentando descobrir as motivações últimas do companheiro. E arriscou possibilidades: “Seria o orgulhoso consentimento do sábio? A indiferença de um homem velho? A vontade de não se tornar um peso para os outros? Como decidir? Sei por experiência que esses estados de alma não são formulados". Mas o que sentia verdadeiramente Sartre, momentos antes do fim? “Ninguém poderia responder, nem mesmo ele”.

 

Procede esticar o debate com frases de outro livro de Simone, "Uma morte muito suave”, relato sobre os últimos dias da mãe padecendo de câncer no hospital.

 

Não existe morte natural, ela considera, nada do que nos acontece jamais é natural. Apesar de todos os homens serem mortais, continua, cada qual considera sua morte um acidente, mesmo que a conheça e consinta, trata-se de uma “violência indevida”.

 

No fundo ela diz que ninguém está preparado para a morte, nem o maior dos sábios orientais, nem o sábio companheiro imortalizado em sua obra. Talvez a filosofia tenha falhado em seu desiderato último de ensinar o vivente humano a morrer.

 

Nos momentos finais em que as cortinas vão se fechando e os papéis, conceitos, símbolos esvaecendo com o mundo, resta um último canto escuro da mente com apenas duas palavras: medo e espanto.

 

Espanto para os que se vão, inconformismo para os que ficam. Dilacerada pela “violência indevida” da morte de Sartre, Beauvoir pediu que lhe trouxessem whisky no quarto do hospital às 5:30 da manhã e bebeu sem parar, acordou vários dias depois com a dor da perda acrescida de enorme ressaca.

 

Como um epitáfio, Simone deixou no livro a frase: “Sua morte nos separa. Minha morte não nos unirá. Assim é: já é belo que nossas vidas tenham podido harmonizar-se por tanto tempo”. Já é belo.

 

luiz cezare vieira
Enviado por luiz cezare vieira em 05/06/2022
Reeditado em 06/06/2022
Código do texto: T7531411
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