Diários reveladores

As histórias são parecidas. Uma da vida, outra da arte. Que insiste na imitação. A época da acontecência quase se cruza, entre os anos 50 e 60. Ambas falam de cadernos preenchidos por esposas/mães nas madrugadas, relatando “o dia a dia de uma solidão imensa”, mesmo tendo ao seu redor marido e filhos.

Desfazendo o mistério, com a vida sempre em primeiro lugar. A Folha de São Paulo traz semanalmente uma coluna, “Nosso estranho amor”, feita por um coletivo de escritoras e escritores, pescando histórias da vida vivida envolvendo “paixões, desencontros, estabilidade e loucuras”. Quanto à arte, essa vem pela boa Companhia das Letras com o relançamento de um livro publicado na Itália em 1954 e traduzido no Brasil em 1962, Caderno proibido, de Alba de Céspedes (1911-1997).

A primeira história é estrelada por Adelle, paulistana, quatro filhos, tendo por atividade cuidar da casa e das crianças enquanto o marido trabalhava fora. Um dia, aos 84 anos, já viúva, em conversa regada a vinho com uma das filhas, talvez depois de cantarolar e se perguntar “eu fico com essa dor ou essa dor tem que morrer?” lhe mostra quatro cadernos escolares contendo “coisas que eu escrevi enquanto vocês cresciam”. Assuntos comezinhos como as reclamações do marido sobre os gastos, ou o silêncio dos filhos ocupados de suas adolescências. No mais, suas dores.

A outra história é protagonizada por Valéria, também casada e com dois filhos. A situação do pós segunda guerra na Itália fez com que, depois dos rebentos crescidos, ela fosse em busca de emprego para ajudar na sustentação da casa o que acabou lhe rendendo uma escondida história de amor. Tirando o “trabalhar fora” o cotidiano de ambas, nos relatos diários, se parece. É o faz tudo em todo canto para agradar filhos e marido, sem perder a ternura, jamais.

Enquanto Adelle preencheu três livretos em seus momentos de “repouso e solidão”, Valéria ficou com apenas um, o “caderno preto, luzidio, grosso”. Um foi revelado, o de Valéria relevado, com o seu segredo mantido. Dores e amores. Ambas com as suas sofrências. Será que Adelle dividia as angústias com as amigas? Para parecer estar reclamando “de uma vida perfeita, de um marido educado e gentil”? E “se você tivesse sabido que a vizinha da porta da frente, e a do apartamento do outro lado da rua, e as demais mulheres desse bairro e dessa cidade estavam passando pelas mesmas coisas, isso teria te feito sofrer menos?”. O “se” não dá frutos. E, entre um e outro, a vida passa...

Valéria não é interpelada. Por achar que os seus escritos têm uma raiz pecaminosa, prefere mantê-los em sigilo. As revelações e questionamentos não se escondem. Será que teria mudado de índole “a partir do dia em que meu marido, de brincadeira, passou a me chamar de mamãe?”. Não sou freira nem sou puta. Sou Valéria.

Assim são as histórias de muitas mulheres, registradas ou não, em diários. As cartas reveladoras como as de As Pontes de Madison estão por aí, ocultas, e no ponto de serem mostradas, num bom roteiro cinematográfico. Que entrem em cartaz e logo! A plateia aplaude e ainda pede bis.

Fleal
Enviado por Fleal em 07/06/2022
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