Sem lenço e sem documento

A ocorrência aqui relatada, é real e vai contada com os personagens que a viveram, sem nenhum excesso pessoal deste escriba, que faz o registro somente para a apreciação de eventuais leitores.

O fato é que dona Francisquinha acabara de entrar na melhor idade, que de melhor tem muito pouco (segundo alguns) e já vivia de forma triste, porém às vezes engraçada, os dissabores da doença do esquecimento. Quando soube pelo médico sobre a moléstia, logo depois se esqueceu do nome, mas lembrava, por vezes, que era o mal do alemão e se referia com o que lhe restara de bom humor:

– Como é mesmo? Vân..., é aquela doença que tenho, do alemão, diz pra ela, minha neta – falava para Vânia, que era sua sobrinha e a vigiava e, não poucas vezes, deixava os serviços da casa para sair correndo atrás da tia, que dera pra ir pras ruas do bairro, em desalinho, descabelada e até descalça... Um perigo!

O pequeno bairro, convivendo ainda com pessoas que passeiam pelas ruas e se conhecem, permitia que dona Francisquinha, nos passeios furtados, estivesse sempre sob a mira de algum vizinho, que corria e delatava a audácia, coibida com presteza pela sobrinha ou outro familiar, que vinha, acolhia, passeava um pouco e a recolhia ao amor familiar e ao amparo possível. Era uma trabalheira danada tentar vigiar e mesmo impedir, pois dona Francisquinha já dava sinais de agressividade. Uma lástima! Uma pena!

O fato é que entre os vizinhos vigilantes avultava o seu Vasco, um português que, se à pátria voltasse, pouco levaria dessas riquezas do dinheiro, pois do Brasil só colhera amizades, os pequenos frutos da aposentadoria e uma velhice com a mulher, senhora saudável, de boa memória, mais ida em anos do que a nossa querida protagonista.

Certa tarde, estando no terraço, seu Vasco viu dona Francisquinha sair rápido de casa e atravessar displicente a rua, por pouco não sendo colhida por um carro veloz, de onde se ouviram xingos contra a transeunte incauta. Mas dona Francisquinha, indiferente, seguiu viagem – sem uma viva alma que lhe pudesse impedir a epopeia.

Vigilante, seu Vasco diz à mulher:

– Dona Francisquinha vem pela rua, sozinha e depressa. Um perigo. Vou conversar e pedir que ela volte pra casa.

– Talvez seja melhor ir à casa dela e chamar a sobrinha. Quer que eu vou lá? Enquanto isso você conversa com ela.

– Não. Deixe que eu resolvo.

E seu Vasco correu à porta da casa a tempo de encontrar a andante, que por ali passava:

– Como vai, dona Franquisquinha?

– Vou bem não. Gosto de andar, passear. Minha sobrinha quis me impedir, saí rápido e mandei ela... – E dona Francisquinha, quebrando os protocolos da decência, proferiu três ou quatro destinos para os quais mandara a sobrinha. E, rápido, emendou:

– E o senhor? Acha que uma velha merece andar, passear, sair sem lenço e sem documento?

– Eu?! Acho que a senhora está mais que certa. Passeie, viaje, sem lenço e sem documento. A vida é uma só, dona Francisquinha – disse o português, com leve sotaque da Lisboa natal.

Àquela altura, Vânia chegou e saiu caminhando com a tia querida, que já nem sabia quem era o seu Vasco...