Tempos e costumes

O tempora, o mores. Aqui, nada a ver com os discursos de Cícero para atingir Catilina, por conta de seus abusos com o bem público. Esse tempo e esses costumes não são os da Roma antiga, e sim os que nos foram deixados como herança da Covid.

Até dois anos atrás, quando uma pessoa saia de circulação, a pergunta do reencontro girava em torno de “estava viajando?”. Hoje, a surpresa de rever o outro, traz embutido um “que bom que você está vivo”, desfazendo a incerteza provocada pela ausência compulsória dos tempos de isolamento. E aí, engatando a conversa, dá-se a mistura de dor, alegria, felicidade, espanto, contidas no compartilhamento das histórias de amigos e parentes de um e de outro que partiram, ou sobreviveram, com ênfase nos milagres.

Essa alegria de encontrar o outro vivo eu experimentei ao ser saudado por uma amiga, caminhante do amanhecer, como eu, depois de meses de ausência. De quebra ainda ganhei um carinhoso “você não imagina como estou feliz em lhe ver bem”.

Claro que isso aconteceu (e tem acontecido) com meio mundo de gente por aí afora. E nem sempre as conversas que rolam nesses reencontros têm sido tão felizes assim. Isso porque de cada lado desfiam-se as perdas que um ou o outro não sabiam e o clima nostálgico acaba prevalecendo na conversa.

Eu, particularmente, passei por algumas situações inusitadas. Trabalhei numa empresa durante trinta anos e tinha um colega com nome idêntico. Pela função que eu exercia, mais voltado para o público, acabei me tornando o mais conhecido, com direito a carregar como sobrenome o selo da empresa: Fernando, do Sebrae. O xará, antes da chegada da vacina, e por conta de algumas comorbidades, partiu antes do combinado, como dizia aquele apresentador de televisão. E a notícia circulou assim: Fernando, do Sebrae, morreu.

Para muitos, o finado era eu. E quem tinha medo de “alma” é claro que apertava os olhos na tentativa de se livrar da “assombração” quando me via pela frente. Foi o caso de um amigo que havia anos não encontrava e que, ao me ver num restaurante. esbugalhou os olhos para mim, quase sem acreditar se era eu mesmo ou uma “alma penada” que estava descendo não sei de onde.

Mais curioso ainda era o fato de, além do nome e de trabalhar na mesma empresa, tínhamos ainda em comum morar no mesmo bairro. E a notícia chegou assim para uma antiga vizinha: Fernando, que trabalhou no Sebrae e morou no Cristo, morreu. Quem poderia ser? Euzinho! E assim a notícia se espalhou.

Dessa forma, morri e ressuscitei (desculpe aí, Lázaro) muito mais de quatro dias depois, tal como aconteceu com o amigo de Jesus. É claro que tem a tristeza pela morte de um dos Fernandos. Mas tem também a alegria de ver nos olhos das pessoas a felicidade por saber que eu estava vivo.

Pensando bem, todo esse lero não passa de desculpa pra dizer que o vírus não foi vencido. O número de internações tem crescido muito ultimamente. Os cuidados devem ser redobrados. E lembrar que usar máscara não mata, mas deixar de usá-la, pode até matar.

Fleal
Enviado por Fleal em 14/06/2022
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