Croma key

Nada mais me põe pra escrever do que a Clarisse. Tem que ser ela. Penso que vou supera-la, mas é besteira. Penso que vou pensar mais rápido do que ela se tivesse a audácia de parar para escrever, mas é ilusão. Tantas vezes ratificada. Tantas vezes petrificada no pulso antes do movimento de escrever. Tenho que despertar como a Clarisse. Tenho que acordar em algum momento. Mas tenho vergonha de ter que acordar. E tenho vergonha de só saber escrever sobre mim. As vezes penso que é melhor do que nada, e que é um ruído que escuto ao menos, que tenho de novo e que ninguém escuta. Então portanto deveria ser interessante. Mas se eu sou interessante,.ou algo além de interessante, algo acessível, algo nescessário, eximir-se-me de mim devia ser meu primeiro impulso. Interesar-me por outra coisa interessante que não a figura inalterada sempre isolada, sempre absorta de sei lá que coisa eu chamo de eu. Não acredito na minha alma. Acredito na dos outros porque as vezes vejo claramente. E porque acho que todos tem direito a alma. Cachorros, gatos, pássaros, baratas, gente. Animais gente. Eu acho que tenho alma quando me sinto um animal. Quase toco. Quase colido. Quase decido-me a me aceitar. Mas senão Clarisse, ou qualquer outra coisa assim, qualquer outra coisa com nome e de história terminada, ou de história alheia me lembra que eu sou torto e desconfortável, que eu quis ter conceito e acabei sem sentido, ordinário, que acabei sendo mais que eu era ou acreditando mais e sendo menos.

Penso em escrever e nunca voltar pra trás. Pra não lembrar o que fui e ser o que eu sou. Penso que fica cada vez mais sufocante a cada linha e que não desenvolvo nada. Mas não consigo aceitar que não faço nada. Não quero chamar isso de orgulho porque sinto que é outra coisa. E é outra coisa que se alastra e que me pertubar, e que me deixa com sono, e que me deixa parada. Parada a ponto de estar-me movendo sem saber do que e sentir ódio quando querem me despertar. Ódio.

Aí meto-me as drogas e aos opios que posso para me livrar dessa sensação. Café é o mais presente. Café que já acreditei ser mais forte e mais carregado e mais chave e mais válvula, mas que as vezes é só outro bloqueio. As vezes é charme para que vejam que eu tenho um corpo e que ele se afeta. Para que vejam minha ansiedade escorrendo e pensem que eu tenho alma para ter ansiedade. É como montar um filme. E tenho meus truques de fazer aparecer a presença de uma alma, mesmo que na minha cabeça eu contracene com um croma Key fuleragi.

Vou resistir a vontade de voltar. Vou resistir a vontade de voltar e me convencer eu mesmo, como sempre faço, que não sou ninguém, que sou odiado, que sou desfavorecido mesmo que na realidade isso me pese nas costas da nuca muito e muito menos do que uma tarde de domingo.

Uma tarde de domingo me lembra por exemplo que eu falo com ninguém. Que eu não sou a Clarisse que sabia pra quem e as vezes devia suspeitar um porquê, ou inventa-lo e acreditar decididamente nele. Ou talvez seja presunção minha. E todas as dúvidas são minhas porque ela, nem viver mais, nem ter essa agonia tem.

Estou voltando, confesso que estou voltando então talvez melhor parar aqui. Sair no meio do fim da festa e não no fim. Trabalhar. Lembrar que tenho que lidar com o encaixe de tijolos num software quadrado que está mais próximo da realidade do que minha cabeça jamais estará. E talvez através dele acessar uma realidade. Realidade que não gosto, porque não diz nada sobre mim a mim, mas diz a quem passa. Diz a quem vê. E talvez eu devesse me agradar e agradecer essa ilusão. Mas a verdade é que só sou real porque estou cansado de não ser. Porque ainda não morri. E porque estou cansado de viver.

Nia Ferreira
Enviado por Nia Ferreira em 20/06/2022
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