Crônicas Egocêntricas Sexagenárias nº 2 - Trabalho, ofício e labor

Domingo, 03 de julho de 2022.

São José do Rio Preto/SP, casa da filha (e dos netos, e até do genro)

Crônicas Egocêntricas Sexagenárias - Nº 2: Trabalho, ofício e labor

Grande parte da vida se passa trabalhando. Pelo menos no que se refere à minha vida, isso é verdade.

Minha primeira atividade profissional ocorreu já na tenra idade de 6 anos, em Porto Alegre, quando pegava meia dúzia de exemplares da Zero Hora no armazém do Seu Rosalindo e saia a vender pelo bairro: “Olha a Zero Horaaa, olha a Zero Horaaa!”

Talvez por isso eu tenha tido, tempos mais tarde, a malfadada ideia de tentar ser jornalista, cheguei a frequentar o curso de Comunicação Social na PUC de Campinas, porém o grande aprendizado dessa época da minha vida foi ter aprendido a jogar pôquer, pelo menos dava mais dinheiro. Toda sexta-feira à noite, depois das aulas – que, por serem na sexta-feira, quase sempre não vingavam – eu participava de uma jogatina com os professores e geralmente depauperava os seus já exíguos estipêndios.

Dizem que o trabalho dignifica o homem, então sou digno há muito tempo ... mas não sei se isso é uma verdade tão absoluta!

A mais ancestral referência que conhecemos sobre o trabalho vem da Bíblia: o primeiro capítulo de Gênesis mostra Deus trabalhando "um monte", seis dias seguidos, sem home office, para criar a terra e tudo que de bom há nela (ressalto que não havia criado ainda o homem!).

E daí descansou, inventando de lambuja o fim de semana, que é uma das mais importantes razões de ter criado o trabalho, só sendo suplantado pelas férias e pela redenção final – a aposentadoria!

Mas então Deus, depois de ter criado todo esse mundão, deve ter pensado: vai dar o maior trabalho a manutenção disso tudo. E então criou o homem! E já apenou: “vai trabalhar, criatura, Deus permite a todo mundo uma loucura” (Vai trabalhar vagabundo, de Chico Buarque):

“O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo.” (Gênesis 2:15)

Pois bem, estavam criadas as relações trabalhistas! Em troca do serviço de manutenção e desenvolvimento da agricultura, o homem receberia uma remuneração, à época, em espécie: “E o Senhor Deus ordenou ao homem: Coma livremente de qualquer árvore do jardim” (Gênesis 2:16)

Porém, todos sabemos que esta relação amistosa não perdurou ... e aquilo que era remuneração virou o benefício da cesta básica, porque depois de um processo administrativo por apropriação indébita, Adão e Eva foram demitidos do Jardim do Éden, por justa causa, sem aviso prévio, levando consigo apenas uma maldição: “Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás.” (Gênesis 3:19)

Traduzindo: vais trabalhar muito até morrer para aprender a não ser ingrato!

Por isso que eu disse que não sei se o trabalho dignifica o homem ... aparenta que fomos rebaixados de divisão, o que não me parece muito digno.

Penso que trabalho bastante, e muita gente jura que eu gosto de trabalhar ... ledo engano ...

“Não gosto de trabalhar - nenhum homem gosta -, mas gosto do que existe no trabalho - a oportunidade de encontrar-se a si próprio. Sua própria realidade - para você mesmo, não para outros -, aquilo que nenhuma outra pessoa jamais poderia saber. Eles podem apenas ver o resultado final, mas nunca dizer o que realmente significa.“ (Joseph Conrad, em “O coração das trevas”)

Eu também gosto do que existe no trabalho ... ele me ajudou na minha construção pessoal (o acabamento não ficou muito bom), a encontrar a mim mesmo (eu estava no lugar mais óbvio, perdido dentro de mim) ... além de prover “algum trocado pra dar garantia” (Todo amor que houver nesta vida, de Cazuza).

Minha avó era partidária do ditado popular “se conselho fosse bom não se dava, vendia”. Mal poderia ela imaginar que hoje meu trabalho é justamente esse: minha profissão, depois de muitas peripécias pela vida, é a de consultor na área da administração pública. É uma profissão difícil, dar conselhos para um público-alvo em que a maioria das pessoas acha que já sabe tudo. Exceto os meus clientes, que são sábios ao ponto de perceber que não importa apenas aquilo que sabemos, mas também a percepção de onde nos encontramos. De nada adianta ser um exímio nadador em meio a um incêndio.

Às vezes, quando sou instado a ser contratado como consultor por algum órgão de uma cidade que não habito, aparece um detrator que vocifera: “Como você pode saber mais do que nós sobre o que acontece aqui? Nós conhecemos nossa realidade melhor do que você, então, como pode nos ajudar?”

Então, eu justifico meu ofício de consultor com uma analogia: “Vocês estão perdidos numa floresta de adversidades, tentando chegar numa clareira à beira de um rio, e só enxergam o emaranhado dos imensos troncos das árvores por todos os lados; eu estou sobrevoando esta floresta de helicóptero, e consigo dizer qual o caminho que você pode pegar para chegar no seu objetivo!” (sem nunca ter pisado na floresta, nem ser piloto - atividade tercerizável!)

Não se trata, pois, de conhecimento apenas, ainda que a expertise adquirida na longa vida profissional me torne apto a compartilhá-lo (ou melhor, para exasperação pós-mortal da minha vó Carolina, vendê-lo). Trata-se de posicionamento, de contexto, de enxergar a situação de uma forma diversa. E com isso, poder ofertar caminhos e soluções diferentes, que não são tão óbvias para quem está envolvido demais com os próprios problemas.

Lembrando que conselhos profissionais estratégicos não são palpites! (estes últimos posso fornecer, gratuitamente, tenho um estoque inesgotável)

Este é, pois, meu ofício (atividade de trabalho que requer técnica e habilidade específicas) que por vezes se transforma em labor (trabalho árduo e prolongado). Assim, resumindo, quando você tem um trabalho chique, é ofício. Quando trabalha "pra caramba", é labor. O ofício leva as pessoas a ter inveja do seu trabalho (olha o absurdo!), enquanto o labor faz as pessoas repensarem o regime escravocrata.

E, no exercício deste meu ofício, conheci um pouco de tudo: ações exitosas, procedimentos administrativos exóticos, teorias melhores do que a realidade, ideias de jerico, vexames inexprimíveis, vergonha alheia, raposas e boçais da política, enfim, histórias pitorescas que serão também objeto destas crônicas sexagenárias, pois tirando o dízimo de minha infância, o saldo da minha vida foi em grande parte despendido com o trabalho, às vezes ofício, às vezes labor, às vezes prazer, poucas vezes lazer.

Foi um longo caminho para chegar aqui. Não sei se o trabalho me tornou mais digno, mas me encontrei através dele, e penso que, além de ajudar algumas pessoas bem-intencionadas, ele me ajudou mais do que a ninguém. Mas isso já estava pensado desde os primórdios da humanidade ... obrigado, Deus, por ter nos dado o trabalho e, em consequência, o fim de semana. Desejo que eles sejam bons para todos (o seu trabalho e o seu fim de semana, porque o Senhor já o é, desde Gênesis - Capítulo 1).

Julio CF Silva
Enviado por Julio CF Silva em 04/07/2022
Reeditado em 06/07/2022
Código do texto: T7552204
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