Viajando nos livros

Livros são como vara de condão. Num abrir e virar de páginas mundos inimaginados surgem magicamente. Alguém poderia argumentar que os filmes fazem melhor, pois ali, as imagens são mostradas. Mas nos livros são pensadas na cabeça de cada leitor.

Como se forma em sua mente, por exemplo, o relato da morte de uma cachorra vira lata, depois de baleada pelo dono, e que ainda sonha feliz, acordando num mundo cheio de preás? E a paisagem de seca nordestina enquadrando essa imagem?

Qual a reação daquele senhor, tomando seu café solitariamente em casa, no início da noite, ao atender uma vizinha que bate à sua porta com o insólito convite pra dormir com ela só para lhe fazer companhia? Imaginou também os desdobramentos do sim ou do não?

E a aurora boreal? Como você pensa em sua boniteza? “Força da imaginação, vai lá”.

São viagens assim permitidas pelos livros. Umas dando paz, alento. Outras questionando. Algumas angustiando, ou causando sofrimento. Risos e choros se revezando. Mas ainda há outras que marcam e deixam a pensar. Foi o que aconteceu com a leitura recente de A Bailarina de Auschwitz, de Edith Eva Eger, no clube Livros da Frederica.

Nascida em Kosice, na Eslováquia, talentosa bailarina, aos 16 anos perdeu a sua condição de atleta na equipe olímpica de seu país pelo fato de ser judia. Logo depois foi levada com a família para o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, onde sobreviveu por um ano. Levou tempo para contar a sua história em livro: só aos 91 anos se sentiu pronta para isso. A distância dos fatos, os seus estudos na área de psicologia e a experiência no tratamento de pessoas com traumas diversos, muito lhe ajudaram na tardia narração.

A crueldade relatada no livro é parecida ao que se vê em filmes como A Lista de Schindler. A pergunta que resta é para saber como tudo isso influenciou na formação e na postura diante da vida, de uma pessoa que passou por tanta dor. Já na orelha do livro é dada uma boa pista disso. Para ela “não existe uma hierarquia de sofrimento. Não há nada que torne a minha dor maior ou menor que a sua, nenhum gráfico no qual possamos registrar a importância relativa de uma dor sobre a outra”. É como disseram dois Tribalistas: “a dor é minha só, não é de mais ninguém”. Portanto, dor é dor, sem hierarquização ou personalização.

Num dos momentos do relato, ao ser inquirida por sua irmã Magda, companheira do campo de concentração, sobre como ela estava, além de nua e com a cabeça raspada, respondeu: “seus olhos são muito lindos. Nunca prestei atenção neles quando estava coberto por todo aquele cabelo”. Para ela, naquele momento, havia uma escolha: “prestar atenção ao que perdemos, ou prestar atenção ao que ainda temos”.

A vida é assim, feita de escolhas, como disse Viktor Frank, também sobrevivente de Auschwitz: “tudo pode ser tirado de uma pessoa, exceto uma coisa: a última das liberdades humanas – escolher sua atitude em qualquer circunstância da vida, escolher o próprio caminho”. Vários, eles podem ser. Única, e determinante, só a sua escolha.

Com o livro também é assim, você pode ter muitas vidas além da sua. É só escolher, ler e imaginar.

Fleal
Enviado por Fleal em 12/07/2022
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