Coisas da humanidade.

O ano era 1974 e eu era aluna do primeiro ano do ensino médio. Na época, era o colegial.

Comecei a estudar literatura. Ah! Que felicidade inigualável! Eu consegui me sentir adulta, intelectualmente pronta para conhecer a essência da alma humana, seus caminhos, desencontros, cantos e desencantos! Não. Ninguém haveria de me censurar; eu estava me apropriando do conhecimento, da arte, da sensibilidade, tomando parte de uma existência que eu almejava sem disso ter ciência. Tenho ainda hoje guardado o meu caderno de literatura: o primeiro caderno universitário da minha vida. Capa marrom escura. Um Caderflex! Na época, uma novidade e um luxo! Comprei o caderno durante as férias de final de ano: tempos de promoção de artigos escolares.

E eu ia anotando, com rigor nos cuidados, todas as falas do meu professor Paulo Frigério, um barbudo com rosto de poeta conhecedor dos labirintos da alma. Uma vez, fomos, uns colegas e eu, à casa do mestre e a sua biblioteca era estupenda. Nunca me esqueci dela, do seu silêncio poético, das vibrações daquelas letras, da sinfonia de sonhos e esperanças!

Acabo de ler na última página daquele caderno uma reflexão do grande poeta e cronista de Itabira, Carlos Drummond de Andrade:

“Abomino igualmente os cidadãos que matam com objetivo político e os governantes que, para punir, matam esses cidadãos. Tudo é crime e é detestável. Observo apenas que uns governos matam em público, outros em sigilo, mas dá na mesma”.

Foi com o professor Frigério que ouvi falar pela primeira vez do extraordinário escritor amazonense Amadeu Thiago de Mello. Logo descobri o poeta era um apaixonado pela floresta, pelo meio ambiente, pelo ser humano. Pela vida. Pelas utopias.

Estudante de Medicina no Rio de Janeiro, logo abandonou o curso para se dedicar à carreira literária. Teve participação política como agente diplomático de cultura na Bolívia e no Chile, onde conheceu Pablo Neruda (aquele mesmo que Vinícius de Moraes exaltava poeticamente: ”eu abro meu Neruda e apago o sol, misturo poesia com cachaça e acabo discutindo futebol” E se consolava cantando: “mas não tem nada, não. Tenho o meu violão”).

Exilado durante a ditadura militar, Thiago de Mello viveu no Chile e ali se consagrou na luta pelos Direitos Humanos. Essa fase foi marcada pelas obras e premiações decorrentes de suas ideologias e posicionamento em defesa da vida.

“Fiz uma opção serena e profunda. Entre utopia e apocalipse, eu fiquei com a utopia. Por isso, eu me sinto muito forte para confiar, cheio de esperança em que cada companheiro que me ouve vai fazer a sua parte para ajudar a vida”.

E nesse momento de obscurantismo que estamos sendo obrigados a amargar, nada mais indicada que a leitura do seu mais famoso livro: “Faz escuro mas eu canto”, com dedicatória a Pablo Neruda – “o meu amigo Paulinho – voz cristalina e ardente, que se ergue cantando, cada amanhecer, pela libertação de nossa América” e “aos grandes companheiros e a todos que trabalham, no amor à Pátria, pelo reinado humano da claridão e da justiça” .

Obra magnífica, completa, transbordante de vida e esperança. Textos que nos motivam a viver com excelência, privilegiando a dignidade, a ética e o avesso da miséria humana.

Vale lembrar “OS ESTATUTOS DO HOMEM”, que assinalam triunfalmente o início da obra:

Artigo I – Fica decretado que agora vale a verdade, que agora vale a vida, e que de mãos dadas, trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II – Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo”...

Ao total são 13 artigos desse Ato Institucional Permanente, mas preciso destacar dois parágrafos:

“O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino”.

“Só uma coisa fica proibida: amar sem amor”

E o artigo final:

“Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas.

A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem”.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 19/07/2022
Código do texto: T7563420
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